A crise abre o campo das oportunidades, levando duas multinacionais, uma brasileira e outra americana, a inventarem o delivery do prato feito, o ‘pê-efe’
Por Valerio Fabris
A pandemia acentua algumas tendências que já estavam em movimento. Há três delas que se mostram bem nítidas: delivery, home office e dark kitchen. Ou seja: entrega em domicílio, escritório em casa e cozinha escura. “Supõe-se que o consumo da alimentação fora do lar teria alguma queda por conta disso”, diz Paulo Nonaka, empresário e presidente do Conselho Nacional de Administração da Abrasel, ao ponderar que esta opinião não passa de mero exercício de futurologia, em um cenário repleto de mutáveis incertezas.
“Há os que anteveem uma depuração do setor da alimentação fora do lar, em que os bons permanecerão e os ruins sumirão. Mas vem ainda esta dúvida: será que, com a grande leva de demissões na economia em geral, muitos aventureiros sem experiência entrarão no mercado, em busca da sobrevivência, aumentando a informalidade?” É um prognóstico que Nonaka igualmente põe na conta da futurologia, que pode se desmentida por uma bem montada estratégia de se transformar a crise em oportunidades.
O certo mesmo, como sublinhou, é que o delivery está crescendo. Somente em março, que foi o primeiro mês da pandemia, de acordo com reportagem publicada na edição de 24 de junho do jornal Valor, houve um aumento de 54% na quantidade de aplicativos (apps) de entregas, na comparação com fevereiro de 2019. Nesta escalada está não apenas o setor da alimentação fora do lar. Estão, também, supermercados, farmácias, lojas de conveniência, pet shops, floriculturas.
Mais proveitoso do que se esperar uma guinada comportamental é ficar de olho nos ajustes pessoais
Os efeitos do confinamento caseiro de parte da população brasileira refletem-se nas pesquisas sobre desempenho das plataformas de entrega em domicílio neste ano. Dados consolidados de abril, como informou Roberto Gandolfo, vice-presidente de logística do iFood, ao Valor, indicam que houve, em relação ao mês anterior, acréscimo de 70% nos pedidos de bolos, doces e sorvetes, e, também, um aumento de 60% nos itens de padaria.
Dezoito mil restaurantes aderiram ao iFood, fazendo com que o número de estabelecimentos ligados à plataforma aumentasse de 142 mil para 160 mil, de fevereiro para março. Isto é: um crescimento relativo de 13% e absoluto de 18 mil novos estabelecimentos. Nonaka não projeta uma vertiginosa guinada no setor da alimentação fora do lar, assim como não crê em uma mudança de 180 graus nos hábitos da população.
Ele acha que os brasileiros voltarão à sua normalidade diária, “com pequenos ajustes”. Embora pontuais, serão sutis mudanças comportamentais capazes de, indiretamente, influir no posicionamento estratégico de cada um dos participantes desse mercado, incluindo as partes interessadas (os ‘stakeholders’). O empresário e conselheiro cita o “paradigmático exemplo” de uma articulação empresarial que produziu a conexão perfeita entre ‘home office’, ‘delivery’ e ‘dark kitchen’.
O que ele menciona é a aliança entre a plataforma Uber Eats (sediada em São Francisco, na Califórnia) e a Sapore (multinacional brasileira, fundada em 1992 por Daniel Mendes), que atua no setor de restaurantes corporativos, servindo 1,3 milhão de refeições diárias no mercado nacional. No dia 12 de junho deste 2020, o Uber Eats anunciou sua parceria com a Sapore para a produção e entrega de pratos populares a preços muito acessíveis, a partir de R$ 9,99. O cardápio faz parte da convencional mesa brasileira. Entre outras opções, dele constam filé de frango, feijoada, strogonoff. O nome adotado pela Uber Eats e a Sapore é ‘Caseirinho’.
Nos espaços abertos a maior oportunidade dos bares e restaurantes
O produto é, na realidade, a ‘marmita express’, o tradicional prato feito (PF). A Sapore passou, assim, a operar uma imensa ‘cozinha escura’ (também denominada de ‘ghost kitchen’, cozinha fantasma), em que tudo o que nela se produz é destinado à entrega em domicílio. Portanto, desenhou-se o triângulo mencionado na narrativa de Nonaka: ‘dark kitchen’, ‘delivery’, ‘home office’. No arco da potencial clientela das marmitas estão, também, as famílias e os remanescentes trabalhadores dos ‘open office’, os escritórios convencionais
A convergência das duas multinacionais (a americana e a brasileira) resulta em um excepcional poder de fogo. O ‘Caseirinho’ já vem sendo experimentalmente comercializado nas duas praças-teste do país (Curitiba e Belo Horizonte) e, também, em Fortaleza e Goiânia. A operação logo será expandida às demais grandes cidades, a começar pela sexta megalópole mundial, São Paulo. Nonaka acha que, nessa portentosa articulação (UberEats/Sapore), há as impressões digitais da crise pandêmica.
“A alimentação coletiva nas grandes empresas passou a ter muitas restrições. Quem já viu aquele modo bandejão, em empresas que tenham 200, 500 ou dois mil funcionários, as pessoas pegando os talheres de metal, se servindo, estendendo os braços ou se debruçando sobre os extensos bufês, pode supor que o coronavírus riscaria do mapa esse sistema. Agora, atendem-se as fábricas com o engenhoso pê-efe. E amplia-se o espectro das vendas ao vasto mercado espalhado além dos muros das fábricas”.
O presidente do Conselho de Administração da Abrasel diz que este caso Uber Eats/Sapore confirma a validade da máxima de que os bons estrategistas transformam as crises em oportunidades. Para os bares, restaurantes, cafés, panificadoras e confeitarias, as oportunidades que se descortinam na ocupação dos espaços abertos das ruas, de frente para as calçadas, pontos de ônibus, escolas, hospitais, parques e praças. Trata-se, a seu ver, de uma pauta para a escolha de vereadores e prefeitos nas eleições que, neste ano, se realizarão nos 5,57 mil municípios brasileiros.