Em 2014, empresário Délio Canabrava adotou a atitude de limpar calçadas e ruas no seu trecho do maior polo gastronômico de Curitiba, e daí a moda pegou
Por Valerio Fabris
Délio Canabrava, 47 anos, é proprietário de um restaurante, um bar e uma confeitaria na rua que se tornou o maior polo gastronômico de Curitiba, situado no bairro Alto da XV. Desde que montou o primeiro estabelecimento há 15 anos, em 2004, ele mantém o hábito noturno de, após o expediente fazer uma limpeza suplementar no entorno dos seus endereços comerciais, recolhendo papéis, copos e outros materiais plásticos que tenham sido lançados na grama ou nas calçadas.
Influenciados pela sua espontânea liderança comunitária, outros donos de bares e restaurantes se motivaram a seguir essa voluntariosa atitude cotidiana. Assim, mantém-se limpo um trecho de rua, à sua esquerda e direita, com cerca de 200 metros de extensão. Canabrava vai além. Providencia a limpeza adicional de duas pequenas praças das proximidades, até mesmo podando o capim que tenha crescido além da conta.
Ele faz questão de dizer que a prefeitura “sem dúvida realiza em Curitiba uma das melhores, ou quem sabe a melhor, das limpezas urbanas entre todas as capitais e grandes cidades brasileiras”. Mas faz uma ressalva: “todos somos responsáveis, direta ou indiretamente, pelo lixo que produzimos, não sendo correto e justo que se atribua exclusivamente ao poder público o encargo de recolher o lixo jogado às calçadas, ruas e praças”. Ao ser perguntado de onde vem esse seu zelo pelo bem comum, respondeu: “da minha família”.
O hábito vem das atitudes da família e das lembranças de Londres
O hoje reconhecido empresário curitibano (em 2017, recebeu o título de cidadão honorário da cidade, em função de suas iniciativas comunitárias) nasceu no pequeno município de Paraíso do Norte, atualmente com 12 mil habitantes, situado na região de Maringá. Mudou-se para Curitiba em 1976. Conta que carrega no seu íntimo o legado de valores comunitários cultivados pelos ancestrais. A avó e a mãe engajavam-se em ações sociais, fundando localmente instituições como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) e o Clube das Mães. O avô havia sido prefeito.
Em 1997, foi para Londres, estudando desenho industrial e, paralelamente, trabalhando em restaurante. Lá conheceu a compatrícia e confeiteira Renata Ferian, com quem se casou. Canabrava conta que se admirava com uma cena diária, ocorrida na estação do metrô do distrito de Earl Court, em cuja proximidade havia um McDonald’s. “Eu reparava um funcionário uniformizado, com carrinho do Mc Donald’s, recolhendo o lixo descartável. Na verdade, eram funcionários que se revezavam o dia inteiro. Ou seja: os gestores daquela loja do McDonald’s se responsabilizaram pelo lixo gerado por sua clientela. E juntava àquela cena as lembranças da atuação cívica de minha mãe e de meus avós”.
Quando em 2014 abriu na Rua Itupava seu primeiro restaurante, o ‘Picanha Brava’, começou a colocar em ação o que havia visto na estação londrina. Para cada nova casa que instalava na principal via do bairro Alto da XV, adotava o rotineiro sistema de limpeza. Em 2005, inaugurou o restaurante Jacobina. Em 2006, a Cantina do Délio. Em 2007, o Café e Confeitaria Banoffi. Em 2008, o Bar Canabenta. Em 2010, o Bar Estofaria. Todos estes estabelecimentos continuam em atividade na mesma Rua Itupava. Mas, ele vendeu três, e ficou com outros três (a Confeitaria Banoffi, o Bar Canabenta, a Cantina do Délio).
“O melhor exemplo que se pode dar é o da atitude”
Ao mobilizar os donos de bares e restaurantes da rua, acabou convencendo seus pares a fundar a Associação da Rua Itupava. Em dois mandatos, presidiu o Conselho Estadual de Segurança (Conseg) do bairro Hugo Lange (contíguo ao bairro Alto da XV), instituição vinculada ao Comando Geral da Polícia Militar do Paraná. Além de continuar como ativo membro do Conseg, o empresário é membro do Rotary Club, “muito atuante na comunidade”. Entre as ações que empreende com os colegas do Rotary, descreve Canabrava, está a ajuda a moradores dos bairros de municípios próximos, na região metropolitana (como Almirante Tamandaré e Colombo), em que há expressivas parcelas de famílias de menor renda.
Nessa região, os membros do Rotary empreendem jornadas de exames laboratoriais e de vista a pessoas de todas as idades. No Alto da XV predomina a alta classe média, mas é comum que os funcionários dos bares, restaurantes e do comércio residam nos municípios da periferia metropolitana. “Geralmente, nossos funcionários moram nas áreas não muito distantes, a uns dez quilômetros daqui. Eles e suas famílias fazem parte de nossos elos profissionais do dia a dia, e, portanto, comunitários”.
Canabrava considera que os vínculos comunitários de um morador e um empreendedor de um bairro ou uma região da cidade são verdadeiramente enlaçados nos solidários relacionamentos de cada dia. “Às vezes, fala-se muito que precisamos construir um Brasil das ruas, das comunidades, mas o sujeito que faz esse discurso nem sempre tem uma vida voltada ao cotidiano das ruas e dos vizinhos. O ambiente desse personagem acaba se restringindo a outra esfera de convivência, que não é a comunitária. Quando convidado a participar conosco, o sujeito diz: ‘faça que eu dou apoio; conte comigo’. E fica nisso”.
Ressalva que há, no entanto, participantes muito ativos, que se somam aos que se empenham em dar suas parcelas de contribuição para a melhoria de qualidade de vida na Rua Itupava. Cita com um destacado empresário do movimento, João Paulo Mehl, que no prazo de dois anos, aproximadamente, implantou na rua um polo gastronômico, como se fosse um centro de compras, com 13 restaurantes de mesas a céu aberto. Os comerciantes todos os dias recolhem o lixo após o expediente. “O melhor exemplo que a gente pode transmitir, é o que a gente faz, é a nossa atitude”.
Sob a liderança de Mehl, revitalizou-se uma pequena praça em frente ao polo gastronômico, dotando-a de um pequeno playground, horta comunitária, jardim e mobiliário. Para tanto, o empresário recebeu ajuda de marceneiros e jardineiros que regularmente prestam serviços aos moradores e comerciantes na rua Itupava, bem como dos comerciantes. O projeto de requalificação da pracinha foi cooperativamente elaborado por professores e alunos do curso de Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Fazer as compras diárias no comércio da vizinhança é essencial ao elo comunitário
As conexões comunitárias são, de acordo com Délio Canabrava, naturalmente tecidas e revigoradas pela prática rotineira de se comprar tudo o que é possível do comércio da vizinhança, seja da farmácia, loja de material de construção, mercearia, papelaria, banca de jornal, padaria ou do sacolão. “Vivo o meu bairro 18 horas por dia, até porque durmo pouco. À noite, saio de bicicleta, fazendo o percurso das ciclovias que correm paralelas à linha do trem. Ando em ziguezague, sempre procurando fazer um percurso diferente, até mesmo para dar uma olhada geral. Se por acaso vejo uma pessoa com o carro parado, por algum defeito, ofereço ajuda. Se noto uma luminária quebrada, informo à vizinhança pelo grupo do WhatsApp que a gente mantém em atividade”.
Diz que se evidencia no grupo do WhatsApp o apoio da vizinhança às ações dos donos de bares e restaurantes, reconhecendo como “importante e bem feita’ a ação coletiva deles, seja na limpeza das calçadas, ruas e praças, e, também, na atitude de fechar os estabelecimentos por volta da meia-noite. “Quando se circula pela rua à noite, veem-se os bares e restaurantes todos cheios. Mas, de manhã, toda a região está limpa”.
Reportagem original publicada na ediçã 127 da revista Bares & Restaurantes