De casa do norte em SP até a lista de restaurantes mais lendários do mundo, o restaurante Mocotó, de Rodrigo Oliveira, representa a Vila Medeiros e é a síntese do Brasil
Entre empresários, consultores e chefs, o 35º Congresso Abrasel levou para Brasília, em agosto, mais de 40 nomes para discutir os desafios de empreender em bares e restaurantes no Brasil. Entre um timaço de palestrantes, um nome se destacou pelo impacto midiático: Rodrigo Oliveira.
O grande público o reconhece hoje por conta de sua participação como jurado no programa gastronômico MasterChef, na Band, embora Rodrigo já tivesse construído sua reputação ao mesclar de forma bem sensível inovação e tradição na cozinha sertaneja em um pequeno restaurante criado pelo seu pai na periferia de São Paulo nos anos 70.
O Mocotó é um restaurante de comida sertaneja localizado na Vila Medeiros, zona norte de São Paulo. Foi fundado como uma casa do norte, em 1973, por José de Almeida e hoje é dirigido por seu filho, Rodrigo.
Entre os conceitos centrais da casa está a inclusividade. Uma experiência para todos, num restaurante que acolhe os mais diferentes paladares, níveis sociais e culturais. Uma cozinha que, como define Rodrigo Oliveira, é feita com os olhos no mundo e os pés sempre firmados no sertão.
O reconhecimento do trabalho veio de diferentes direções. Ocupou o 23º lugar na lista dos melhores restaurantes da América Latina pela revista britânica Restaurant (2021), recebeu o selo de Bib Gourmand pelo Guia Michelin e o prêmio de melhor restaurante do mundo na categoria “no reservation required” pelo World Restaurant Awards em 2019.
Quando se fala em identidade, se lembra também de Rodrigo Oliveira e seu restaurante Mocotó. Nos últimos anos mais um passo foi dado com maestria: a de impacto social por meio da gastronomia.
Acontece que Rodrigo é casado com a historiadora e professora Adriana Salay, doutora em história social pela USP estudando sobre fome e alimentação. Adriana comanda o projeto Quebrada Alimentada, que surgiu na pandemia, organizado pelo restaurante Mocotó, que distribui alimentos para famílias em vulnerabilidade.
Em sua palestra no Congresso Abrasel, Rodrigo falou mais sobre suas origens e a trajetória do restaurante Mocotó. A Bares&Restaurantes esteve presente e separou alguns pontos descritos abaixo.
O começo do restaurante Mocotó como uma casa do norte
“O Mocotó começou como uma “Casa do Norte”, fundada em 1973, pelo meu pai, seu José Almeida, mais dois irmãos, todos retirantes nordestinos. Saíram de lá, literalmente num pau de arara, levaram oito dias para chegar em São Paulo, trabalhar em feira metalúrgica, fundição, malharia, até começar essa casa do Norte.
Não sei se todo mundo conhece o que é uma casa do Norte, mas é um misto de empório com boteco. Você vai lá, compra farinha, feijão, os queijos e tal, toma uma cachacinha, come uma tripa de porco e caldo de Mocotó.
O caldo de Mocotó foi o primeiro prato da casa que meu pai reproduzia por intuição, um cozinheiro muito sensível, mas sem nunca ter estudado, imagina, nenhuma educação formal. Ele estudou talvez até a terceira série, a quarta série, mas tinha muita sensibilidade.
O sucesso dessa receita foi atraindo a atenção do bairro, da comunidade, e essa colônia nordestina começou a fazer fila na porta para tomar caldo de Mocotó.
A gente não tinha mesas, então as pessoas comiam apoiadas nas prateleiras, empurravam a cachaça, o óleo para lá, a manteiga de garrafa apoiava seu copinho de cachaça, o copo de caldo de Mocotó, e a gente não tinha talher nem nada, era tudo servido no copo, e isso mudou a história da nossa comida.
Esse empreendimento cresceu, virou um boteco de dez mesas na frente da casa original, onde trabalhava meu pai e mais três pessoas, para daí, então, continuar como um boteco por mais 30 anos.”
De pai pra filho
“A primeira revolução que fiz no Mocotó foi separar a lavagem das coisas engorduradas das coisas não engorduradas, e já foi uma guerra com meu pai. Para que mexer nisso? Faz 30 anos que é assim. Quem aí tem um pai durão, sertanejo?
Não é fácil ser filho de um sertanejo, de um nordestino. Então, fui me envolvendo com o negócio, tomando gosto - para desgosto do meu pai - que não me queria ver, acho que por saber que era uma lida muito dura, e depois, só depois eu percebi que eu me sujeitava a isso, adolescente, comecei com 13 anos de idade, ia para lá para poder ficar perto do seu Zé.
Mesmo tomando gosto, era difícil vislumbrar ali uma carreira, era muito precária a nossa estrutura. Acho que é uma palavra justa para descrever o que a gente tinha ali. Mas tinha verdade, tinha paixão, era um sertanejo que estava ali defendendo suas cores, sua cultura, e a casa era de uma certa forma próspera, ou pelo menos estável.
Ao mesmo tempo eu queria estudar. Cursei Engenharia Ambiental, depois Gestão Ambiental, que foi onde eu conheci o termo Gastronomia, lá pelos anos 2000, eu ouvi essa palavra. Falei: “Nossa, mas como assim Gastronomia? Será que vão ensinar a cozinhar?”
E aí um amigo explicou que iríamos aprender a cozinhar, aprender de gestão de restaurantes, conhecer as cozinhas do mundo, as cozinhas clássicas, e eu me encantei por isso, porque minha família não acessava esse universo de restaurantes, porque não tinha a cultura disso, não tinha recurso para isso.
No Mocotó tinha um farinheiro na mesa e um saleiro encardido. Não tivemos talheres, por muito tempo, O único talher que tinha no restaurante era colher, não tinha garfo nem faca, era tudo comida de cumbuca. Na minha cabeça todos os restaurantes eram assim.”
O início na gastronomia
Quando eu era adolescente, a mãe de um amigo me levou ao Habib's. E eu achei que era o restaurante mais legal do mundo, achei que era onde as pessoas ricas comiam, porque era iluminado, os copos de suco eram gigantes, tinha uma taça de sorvete e tal.
Até hoje tenho muito carinho pelo Habib's. Quando descobri a gastronomia comecei a ler tudo que eu podia, até ter coragem de tentar, porque não parecia para mim. Você lê a biografia dos grandes chefs e vê que o cara cozinha desde criança com a avó, ele nasceu nesse meio, é inspirado por receitas e coisas.
E a gente comia farinha e feijão, e isso não estava nos livros de culinária, nem nas revistas de gastronomia daquela época.
Tomei coragem, larguei a faculdade de gestão ambiental e fui fazer gastronomia. Fui contar lá na quebrada que ia fazer gastronomia, todo mundo ficou superfeliz, e eu estranhei, porque, caramba, nem eu conhecia, será que as pessoas aqui conhecem, sabem o que é gastronomia?
Daí entendi que eles acharam que eu ia ser médico do estômago ou achavam que eu estava falando de astronomia.
Empreendendo em um restaurante na borda de São Paulo
Me formei em 2005 e descobri que esse conhecimento universal da gastronomia também podia ser aplicado para a cozinha brasileira, mais especificamente para a nossa cozinha, que é a cozinha nordestina, sertaneja, e também poderia ser aplicada na Vila Medeiros. Uma coisa é você fazer um restaurante nordestino, sei lá, no Jardins.
Mas mesmo naquele momento já estava claro que se eu fosse empreender com gastronomia, seria na Vila, seria ali na quebrada, que é onde eu cresci, que é onde a gente mora até hoje.
Então, mesmo sem ter a menor ideia de onde eu estava me metendo, o que a gente podia construir, qual era o limite de um restaurante nas bordas da cidade, eu sabia que era ali que a gente ia tentar. O Mocotó foi evoluindo, foi sendo notado, as pessoas começaram a escrever sobre a irem e fomos melhorando a estrutura.
Em 2003 nós compramos o nosso primeiro forno combinado. Se a gente juntasse absolutamente tudo que tinha no restaurante, de equipamento, de utensílio, de estrutura, não dava o valor de um forno combinado, que na época custava uns 15 mil reais e a gente não tinha nem um carro desse valor.
Depois de muita dor de barriga, tomei coragem e comprei. Foram cinco parcelas de R$ 3 mil. O Carlos, que é o nosso vendedor, merecia um troféu, porque pouca gente faria uma prestação para aquele boteco que a gente tinha naquele momento, e ele acreditou.
Quando o forno chegou, começamos a assar os escondidinhos em 20 minutos, em vez de uma hora, uma maravilha.
O meu pai chegou de viagem, passou pelo forno e disse; “e esse forno, estava aqui?” Eu falei: “não, na verdade, não, é novo”.
Ele retrucou espantado: “mas e o outro, que estava bonzinho, o que você fez?”
“Ah, eu dei para o nosso primo, que não tinha, doei e tal”
“Ah, deixa de ser besta, o outro forno novinho. E quanto foi essa coisa?”
Disse para o meu pai que custou 3 mil reais, que na verdade era o valor de uma parcela, né?
“3 mil reais num forno!? Mas você é besta mesmo. Pipoca comprou um Fusca novinho por R$ 2,700 e você pagando 3 mil no forno?”
Hoje nós temos seis fornos grandes em operação na Vila Medeiros, sem contar as outras casas. Mas, daquele primeiro forno, que a gente comprou a prestação, até hoje, a evolução foi muito sensível, foi pouco a pouco. Tem gente que fala: “nossa, impressionante como o sucesso chegou rápido para o Mocotó!”.
Mas a verdade é que foi pouco a pouco. Pra quem ficou na pia por dez anos lavando louça e aguentando as broncas do Seu Zé, demorou muito viu!
A conquista do primeiro saleiro
“Entre começar o negócio e ter algum reconhecimento foram quase 20 anos. Faz 30 anos que eu estou com o Mocotó na Vila Medeiros. É uma evolução muito sensível. Quando a gente trocou o nosso saleiro, que era um saleiro de plástico, daqueles encardidos, que não importa o quanto você lave, ele continua encardido, por um saleirinho muito simples, mas que era com a tampinha de metal, e era de vidro, já foi uma super evolução!
Quando a gente comprou os primeiros talheres e pratos descontinuados, ou seja, um pouquinho de cada, porque estava na promoção, misturou com pratos de uso doméstico. Nada era profissional. Já foi uma pequena evolução. E quando a gente trocou as nossas mesas e cadeiras, que eram daquelas que você ganha das companhias de plástico e tal, já foi outra evolução.
Inclusive, as primeiras mesas e cadeiras foram feitas por uma marcenaria lá da região que fazia móveis escolares. Hoje a maioria do mobiliária é amarela, mas não foi um caso pensado, é porque o cara só tinha essa cor e acabou virando uma assinatura.
Tudo foi construído nessa toada de melhorar um pouquinho de cada vez, de fazer tudo um pouquinho melhor, sem ter a menor ideia do que havia ali na frente.