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Mesmo em época de crise, restaurantes, bares e cafés têm ações que demonstram a importância do papel social do setor de alimentação fora do lar

Chef Henrique Fogaça entrega quentinhas em São Paulo para pessoas em situação de rua por meio do projeto Marmita do Bem, que já conseguiu produzir mais de 12 mil refeições.


Por Gabriel Lacerda

No dia 13 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a COVID-19, doença provocada pelo coronavírus (Sars-Cov-2), como pandemia. Em todo o mundo medidas de prevenção da doença foram tomadas para evitar a disseminação do vírus. Logo de partida, uma das principais ações adotadas pelos governos foi o isolamento social, com o pedido dos órgãos de saúde para que a população ficasse em casa. Assim, bares, restaurantes, lanchonetes fecharam as portas, muitos se mantiveram apenas com o delivery. E, mesmo para esses, os impactos econômicos são enormes. Insumos e produtos perdidos pela repentina parada do consumo, problemas para pagar as contas em um cenário de baixo (ou nenhum) faturamento, falta de visibilidade de como e quando voltarão a operar. Mas, mesmo neste cenário, uma palavra se faz presente: solidariedade.

A frase escrita ao lado da porta do que é considerado um dos primeiros restaurantes do mundo (aberto em Paris, na França, em 1765) dizia, em latim: “Venis ad me omnes qui stomacho laboratis et ego restaurabo vos” (vinde a mim, vós que trabalhais, e restaurarei vosso estômago). O empresário francês Boulanger (cujo nome verdadeiro era Mathurin Rose de Chantoiseau) já usava o conceito de restaurar, sustentar, deixando claro o papel social do empreendimento. Hoje não é diferente. E, mesmo com todas as adversidades, chefs e donos de bares e restaurantes hoje se unem para ajudar a sociedade em um momento difícil.


Em São Paulo, o chef Henrique Fogaça, também jurado do programa de televisão Masterchef, junto a dois sócios (Anuar Tacach e Alberto Hiar) do restaurante Jamile tiveram a ideia produzirem marmitas para distribuir aos moradores de rua da capital paulista. "Estava todo mundo parado, restaurantes com ingredientes próximo de perder, as empresas que trabalham no ramo perdendo ingredientes também. A gente olhou esse lado, vendo as pessoas na rua passando fome e resolvemos ajudar dessa forma”, explica o chef Fogaça.

Nomeado de “Marmita do bem”, o projeto tinha inicialmente a expectativa de produzir 10 mil quentinhas para serem entregues à população carente, mas, em apenas 12 dias, foram feitas sete mil e, hoje, já passaram 12 mil. “A gente recebe doações, elaboramos o cardápio e produzimos diariamente. As pessoas podem doar insumos ou dinheiro”, relata Fogaça. No início, a meta era alcançar R$ 100 mil e, até o fim de abril, foram captados mais de R$ 118 mil.

De acordo com o último censo realizado pela Prefeitura de São Paulo, em 2019, mais de 24 mil pessoas vivem nas ruas da capital paulista. Ainda segundo a pesquisa, o número cresceu mais de 50% em quatro anos. E visando também ajudar esse público nasce outro projeto, o Cozinha de Combate. “Como podemos ajudar quem está necessitado?” Foi dessa dúvida que o projeto surgiu, explica Izadora Dantas, chef e sócia-proprietária do Isla Café. “Conhecíamos um grupo que realizava trabalho voluntário, mas eles estavam sem mão de obra e sem doações. Daí começamos a pensar como ajudar pequenos produtores, pessoas em situação precária e com dificuldade”.

Além das pessoas em situação vulnerabilidade social, a chef também pensou em como ajudar os funcionários de seu estabelecimento que está fechado. “A cada 20 reais doados, eu consigo produzir marmita, entregar, pagar meus funcionários e comprar do pequeno produtor. Eu cuido do meu funcionário, pois se eu não ajudá-lo agora, pode ser que ele passe alguma dificuldade lá na frente. Todos estão recebendo em dia e ajudando na produção das marmitas”, relata Izadora.

O Cozinha de Combate já ajudou mais 3500 pessoas no primeiro mês de ação e segundo a sócia-proprietária do Isla Café, a ideia que no próximo mês sejam ajudadas mais de doze mil. “Nessa primeira fase, eram eu, meu sócio, Marcus Ozi, e os funcionários. Com toda produção feita no Isla. Agora, nessa nova etapa, vamos contar com a ajuda de mais restaurantes e um centro de distribuição das marmitas para podermos alcançar mais pessoas”, conta. O projeto, que é sem fins lucrativo, já ajudou pessoas na Cracolândia, em Paraisópolis, em um Centro Espírita e no Lago São Francisco.

Izadora Dantas mostrando a quentinha entregue pelo projeto Cozinha de Combate


O estado do Amazonas tem sido um dos estados brasileiros que estão mais sofrendo com a doença. O hospital Delfina Aziz está na linha de frente no combate à doença, tanto é que se tornou o hospital referência no tratamento de pacientes com coronavírus na cidade de Manaus. Por isso, o advogado e empresário Walber Cabral, do restaurante Naoca, resolveu criar duas promoções com intuito de ajudar e agradecer os funcionários de saúde da capital amazonense. “No primeiro momento, eu pensei: vamos dar 50% de desconto em tudo que existe em nosso cardápio para todos os funcionários da saúde. Motorista de ambulância, dentista, médico, enfermeiro, nutricionista, todos! E logo a resposta de agradecimento veio. Sentimos o carinho do profissional da saúde e foi gratificante”, relata Cabral.

"Depois pensamos em colocar o cliente para agradecer. Criamos a promoção pizza em dobro. O cliente paga uma pizza e doa outra para o Hospital Delfina Aziz. Não tem custo para o cliente e nem para a gente. E o cliente pode enviar uma mensagem para o hospital também para mostrar ainda mais esse carinho. Estamos entregando cerca de 20 pizzas por dia de entrega no hospital”, completa o empresário. Mesmo com um número considerável de vendas, Walber conta que não possui lucro e que neste momento “é a felicidade de ajudar o próximo que paga”.

Também nessa linha, o empresário carioca Thiago Barcellos, proprietário do Zacks Restaurante, resolveu, antes de fechar por causa do decreto de sua cidade para conter a disseminação do Sars-Cov-2, que pegaria todos seus insumos do restaurante e faria marmitas para serem distribuídas para pessoas carentes no centro do Rio de Janeiro. “Eu tinha um estoque e não sabia quando o decreto acabaria. Eu podia ter vendido, igual vi algumas pessoas fazendo, mas resolvi chamar meus chefs e fazer comida para distribuir. Fizemos 200 (marmitas) e fomos, no meu carro, entregar. Começamos pelas pessoas mais idosas, não deixamos dar aglomerações e entregamos. Esse dia, foi o melhor dia da pandemia para mim. Com tão pouco que tinha, consegui fazer o bem para duzentas pessoas. Saí de lá outra pessoa”, relata Thiago.

No Sudeste, Minas Gerais teve desde o começo uma das mais severas restrições ao funcionamento de bares e restaurantes. Mesmo com o fechamento, o restaurante de comida oriental Kanpai não poupou esforços para produzir marmitas para serem entregues para pessoas em situação de vulnerabilidade social. A ideia, que antes estava somente no papel, ganhou forma e força na pandemia.

Atualmente, a equipe, de acordo com o sócio Lucas Oliveira, produz, voluntariamente, 450 refeições, que são distribuídas com o auxílio da ONG Vingadores do Bem em comunidades de Belo Horizonte, praças e rodoviária de BH. Uma boa medida que também aconteceu durante a pandemia do coronavírus foi a aprovação, em abril, do Senado do projeto de lei que passou a autorizar bares, restaurantes, lanchonetes e afins, a doarem alimentos ou refeições que não forem vendidos. Ficando punível somente se for comprovado que estabelecimentos doaram algo estragado de forma intencional.



A retomada

Muitas das ideias surgiram durante a pandemia e, segundo seus idealizadores, alcançaram excelentes resultados. E pergunta que não quer calar: isso vai continuar? Bem, se depender da chef de cozinha do Isla, Izadora Dantas, a cozinha do restaurante dela nos dias de folga dos funcionários vai se transformar em uma sala de aula para ensinar as pessoas a produzirem comida e essa refeição ser levada para quem precisa. “Conversei com meu sócio, Marcus Ozi, e vamos continuar com o ‘Cozinha de Combate’ uma vez por semana. Será no dia que o restaurante estiver fechado.

Quero poder produzir marmitas para entregar para quem precisa e instruir as pessoas para que elas possam aprender a fazer a comida também. Temos a estrutura no Isla e agora queremos colocar em prática”, diz a empresária. “Eu quero abrir o restaurante quando tudo tiver seguro, mas, enquanto isso, quero fazer economia girar, então sempre que compro, compro do pequeno, do açougue da rua, da padaria... é dever do restaurante. A palavra restaurante significa restaurar, devemos ajudar os pequenos (comércio)”, completa. O chef do Jamile, Henrique Fogaça, também quer fazer com que o Marmita do Bem continue após a pandemia.

A ideia do chef é que o projeto aconteça dois dias e que ajude ainda mais as pessoas. “A gente olha para o lado e vê a sociedade que a vivemos. A gente, que é pai, vê crianças em situações difíceis, vê pessoas na rua, idosas, gente que não tem o que comer, que não sabe o que comer e vemos que podemos ajudar. Ter um lado mais solidário e humano. Quando acabar a pandemia a gente pretende continuar, não todos os dias, talvez duas ou uma vez por semana. Vamos organizar o fluxo de trabalho para poder continuar ajudando essas pessoas”, finaliza Fogaça.

Em Manaus, o empresário Walber, do Naoca Restaurante, conta que vai ter que mudar a promoção, mas por um bom motivo. “Aqui, vou ter que pensar em algo para ajudar outros vários outros heróis. Segurança pública, serviço gerais, professores, etc. Às vezes, eles me ligam e perguntam porque ainda não fiz promoções com eles”, relata. Ele também acredita que o momento de reabertura total não é agora, mas que espera que aconteça logo. “A gente pode esperar mais um pouco antes de abrir normalmente, é preciso cautela. Vamos ter tempo de nos adequar e abrir com total segurança”, pondera o proprietário do Naoca Restaurante. Abertos ou não, os restaurantes trazem consigo e aplicam a mesma essência do francês Boulanger: alimentar aqueles que têm fome.

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