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As revisões dos planos diretores são uma janela de oportunidade para aproximar moradia, trabalho e comércio nas áreas urbanas

O urbanista Carlos Leite. Foto: divulgação

Por Valerio Fabris

As melhores calçadas do mundo não são suficientes para dar vida e dinamismo a um bairro exclusivamente residencial. Do mesmo modo, os mais bem-acabados passeios públicos não impedem a desertificação noturna das áreas centrais das cidades, que se converteram em locais de salas, escritórios, agências bancárias e repartições. A capital paulista oferece os dois destacados exemplos extremos. A área puramente residencial é, por exemplo os bairros dos Jardins ou o Morumbi. As regiões predominantemente comerciais são as centrais, distritos da Sé e da República.

“Nos Jardins só há moradias. E na região central, há pouca população moradora e muita atividade comercial”, diz Carlos Leite, um urbanista paulistano que há duas décadas vem pesquisando e realizando projetos voltados ao desenvolvimento urbano em geral. No seu campo de atuação, estão, também, as questões temáticas da sustentabilidade socioambiental, dos territórios urbanos informais e das cidades inteligentes.

Ele dirige a empresa Stuchi & Leite Projetos & Consultoria, em sociedade com a arquiteta e urbanista Fabiana Stuchi. É professor da Universidade Mackenzie, autor do premiado livro Cidades Sustentáveis, Cidades Inteligentes e membro do Conselho de Política Urbana da Associação Comercial de São Paulo. Em entrevista à Bares & Restaurantes, Carlos Leite repassou os tópicos abordados, em novembro de 2015, na sua exposição durante o Seminário Internacional Cidades a Pé, promovido em São Paulo pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP).

Ele havia transmitido um recado claro e direto à plateia do Seminário Cidades a Pé, majoritariamente constituída por urbanistas brasileiros e de vários países, bem como por ativistas e lideranças de organizações não governamentais: “está falido o modelo da cidade com funções urbanas geograficamente separadas”. A desintegração espacial das cidades, como acrescentou o palestrante, baseou-se no protagonismo do automóvel, imperante durante quase todo o século XX.

Na recente entrevista que se segue, Carlos Leite discorreu sobre os pontos que abordou no seminário da ANTP do final do ano passado.

Entre os urbanistas, constata-se uma generalizada e cada vez mais enfática condenação às cidades espalhadas. Por que está ocorrendo esse consenso agora?

O modelo do século XX, de uma cidade dispersa e monofuncional, em que se depende do carro para tudo, faliu de vez, acabou. A cidade que se está buscando é muito diversa dessa do século passado, porque não há o menor sentido em, por exemplo, se separar a moradia do trabalho e, também, dos demais usos urbanos. O saudável é que possamos fazer 90% das coisas perto de onde a gente mora. E, para as movimentações que ficam fora esse dia a dia típico, usemos um bom e eficiente transporte público. A cidade tem de ser feita de centralidades multifuncionais, propiciando-se o encontro entre as pessoas e, também, as atividades típicas do dia-a-dia. Temos de resgatar a qualidade da vida cotidiana.

Diariamente, repetem-se em São Paulo e em outras cidades as dramáticas cenas de ônibus abarrotados, sobretudo no início e no fim do expediente.

A região mais populosa de São Paulo, que é a Zona Leste, traz para o centro expandido da capital o equivalente a uma população do Uruguai por dia, um país que tem 3,5 milhões de habitantes. Os dois destinos centrais de São Paulo, que são a Sé e a República, por sua vez, oferecem 253 vagas de trabalho para cada pessoa que mora ali. Há ainda pouca gente morando no centro. E, paradoxalmente, há no centro uma imensa oferta de oportunidades. É área de imensa atividade comercial, muito dinâmica, mas apenas durante o dia. É surreal. Esse metabolismo não dá certo, não funciona. É inadiável o incremento de usos mistos pela cidade toda.

A julgar por sua avaliação, São Paulo já sabe o que precisa ser feito para que se vire a página do modelo falido do século XX, ou precisa de mais clareza em relação ao seu futuro?

O nosso novo Plano Diretor (2014) fornece todos os parâmetros e instrumentos inovadores para se fazer essa virada Se vai dar certo, os próximos anos dirão. É a história que vai dizer se terá havido a aderência da sociedade, do mercado e dos próximos gestores públicos. O pacote de soluções já está disponível para ser colocado em prática: maiores densidades, uso misto, fachadas ativas, BRTs, VLTs, ciclovias, caminhabilidade. Em síntese, o Desenvolvimento Urbano Orientado pelo Transporte (DOT), como já se faz nas cidades mais qualificadas atualmente, entre elas Nova York, San Francisco, Paris, Barcelona, Bogotá ou Medellín.

Quando se fala em uma boa densidade, para que haja vida urbana, o que isso significa, em termos quantitativos?

Estamos falando, aí, de mais de 250 habitantes por hectare, sendo que a cidade de São Paulo, na média têm 70 hab/ha, baixíssimo, como ocorre, alías, com a imensa maioria das cidades brasileiras. Copacabana vai estar sempre “bombando” de gente nas calçadas, porque tem 290 habitantes por hectare. Os Jardins, Alto de Pinheiros e Alphaville têm aproximadamente 25 habitantes por hectare. Santa Cecília, onde moro, tem 280. Manhattan e Copacabana têm 290. Barcelona tem 341 -e atenção, sem nehum prédio com mais de seis andares. Ou seja, as densidades altas não são sinônimos de verticalização, como se acha comumente no Brasil.

Durante o Seminário Internacional Cidades a Pé, em novembro de 2015, a sua palestra foi iniciada com esta pergunta, dirigida à plateia: “Se tivermos excelentes, maravilhosas calçadas no Morombi, elas serão utilizadas pelas pessoas?”. O auditório não conseguiu responder. A sua resposta é de que não serão utilizadas, porque é um bairro exclusivamente residencial, com baixíssima densidade de habitantes por hectare.

Um dos mais valiosos objetivos do urbanismo é colocar gente no chão da cidade. Podemos ter magníficas calçadas, tanto no design quanto no mobiliário, na iluminação e no paisagismo. Mas, se não há uma dinâmica urbana consistente, propiciada pelos usos mistos e pelas densidades maiores, as belas calçadas continuarão vazias. Os bairros estritamente residenciais têm, como eu já disse, 25 habitantes por hectare, na média. Em Copacabana – que, sem dúvida, é um clássico exemplo brasileiro – há 290 habitantes por hectare. Tem moradia, trabalho, comércio lojista, escolas, postos de atendimento à saúde, bares, restaurantes e uma boa densidade.

Mesmo que a qualidade das calçadas não seja o elemento indutor da vitalidade e do dinamismo urbano, são o suporte para uma cidade caminhável.

É claro. Boas calçadas, com adequado design urbano, são essenciais. Se fôssemos avaliar a qualidade das calçadas brasileiras, tiraríamos zero.

As construção e conservação das calçadas são, no Brasil, de responsabilidade do proprietário do imóvel. Há os que defendam que a responsabilidade seja passada para o poder público, que cobraria contribuição de melhoria. Concorda?

É uma questão polêmica, aqui no Brasil. Não tem uma resposta definitiva, porque aparentemente nenhuma das duas coisas funcionaria por aqui. É péssimo o histórico da responsabilidade das calçadas recaindo sobre o particular. Temos, também, péssima tradição da manutenção da coisa pública por parte de quaisquer governos. Não há planejamento com concretizacão efetiva e continuidade; ninguém cuida, não tem dinheiro, e se, alguma coisa é feita, depois não se dá continuidade. Então, é temerário deixar as calçadas por conta do poder público. Talvez seja até pior do que está. Confesso que eu tenderia a uma coisa mista, talvez. Legalmente permanecer do jeito que está, como responsabilidade do proprietário, mas com parâmetros e instrumentos que obriguem a continuação do desenho das calçadas, com uma fiscalização mais efetiva. Confesso que não consigo enxergar uma resposta convincente para esta questão.

Como fica o carro na cidade mais compacta, de usos mistos, em que a maior parte das atividades diárias de uma pessoa esteja mais ou menos próxima de sua moradia?

O carro tem que voltar a ser aquilo que era no seu início: carro de passeio. Ou seja, só o utilizaríamos eventualmente. Ele não pode continuar sendo o protagonista das cidades. Tem de ser investir pesadamente no transporte público eficiente e de qualidade, multimodal. Outra questão: quando a gente vê qualquer cidade brasileira, em imagens do Google, enxerga milhares de carros estacionados junto às calçadas. E, no trânsito, um outro tanto de carro formando imensos congestionamentos. A minha proposta é a de que haja edifícios garagens em que, no envoltório de um quilômetro, sejam suprimidas todas as vagas de ruas. Portanto, libera-se o espaço usado pelos carros estacionados nas ruas para aumentarmos e qualifcarmos calçadas e passeios públicos. Esses edifícios garagens são, também, de usos mistos, com boa arquitetura, salas, escritórios e, também, com bares e restaurantes embaixo. Em síntese, assim vamos produzir cidades mais para as pessoas do que para os carros.

Qual a função das lojas, do comércio de rua, dos bares e restaurantes, na vida urbana?

São fundamentais! É o que faz a gente se encantar quando visita outros lugares do mundo, como Barcelona, por exemplo. Os bares, restaurantes e lojas dão vitalidade às ruas e calçadas. Funcionam até mais tarde, gerando esta externalidade positiva: mais segurança. Colocar gente na rua é botar segurança. Para tanto, são ingrediente essenciais os usos mistos, com moradia e trabalho. A atividade comercial deve-se espalhar pela cidade toda. Os instrumentos urbanos das fachadas ativas e da fruicão urbana, presentes em nosso novo PDE de São Paulo, com incentivos aos empreendedores ao adotá-los, são o caminho de como fazer.

O que as lideranças dos diversos segmentos do comércio precisam fazer para que a mistura aconteça?

Precisam atuar fortemente junto aos planos diretores das cidades. Faço parte do comitê de urbanismo da Associação Comercial de São Paulo e do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro, e lá a gente sempre discute muito a relação de causa e efeito entre o zoneamento, a densidade, os usos mistos e diversificados. A tendência no mundo inteiro são as cidades multifuncionais e com maior densidade de habitante por hectare. Com maior densidade, há mais gente para consumir o que se oferecem no comércio de lojas, nos supermercados, nos bares e restaurantes.

Na sua avaliação, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo atende aos pressupostos do adensamento e dos usos mistos?

Sou fã do novo Plano Diretor de São Paulo, aprovado em 2014. É absolutamente inovador, o melhor da história de São Paulo e do Brasil. Contempla, de fato, uma nova dinâmica urbana, pautada em maiores densidade, com uso misto, com mais gente nos espaços públicos.

A Lei de Zoneamento, que é o conjunto de regras para a ocupação do solo, tem de ser revisada neste ano, para que se adeque ao Plano Diretor Estratégico, aprovado em 2014.

As revisões de legislação urbanística são, hoje, as importantes janelas de oportunidade para mudarmos o que tem de ser mudado, em São Paulo, alinhando a cidade com as tendências urbanísticas atuais e mais promissoras. Temos os instrumentos para isso. São instrumentos que, bem ou mal, existem no mundo democrático, com os planos diretores e os planos de bairros. Percebe-se um crescente envolvimento participativo. A sociedade está se movimentando em direção à mudança. A conhecida Lei do Zoneamento - que formalmente tem o nome de Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) - deve continuar e incentivar o trabalho inovador do PDE, e não abortá-lo.

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