O primeiro degrau da escada da produtividade é a educação no ambiente familiar, antes mesmo de as crianças irem à escola, aos seis anos de idade. O quociente de inteligência (QI) não é todo herdado pela via genética. Vem da combinação de um componente genético com a ginástica intelectual exercida desde a meninice. Os que nasceram e cresceram em ambientes nos quais se pratica o jogo de questionamentos e respostas terão inteligência superior. Como os músculos, a inteligência se desenvolve com o seu exercício.
Estas são algumas das conclusões de Claudio de Moura Castro, considerado no Brasil e no exterior um dos mais destacados especialistas de educação na atualidade. Ocupou cargos de assessoramento e direção na Organização Internacional do Trabalho (OIT), no Banco Mundial, no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), vinculada ao Ministério da Educação.
Carioca de nascimento, mudou-se para Minas Gerais em 1950, quando tinha 10 anos de idade.Formado em economia na Universidade Federal de Minas Gerais, tornou-se mestre e doutor, respectivamente pela Yale University e Vanderbilt University. Lecionou em diversas universidades brasileiras e, também, nas universidades de Chicago, de Genebra e da Borgonha, em Dijon, no nordeste francês. Desde 1996, tem uma coluna quinzenal na revista Veja, escrevendo sobre educação.
Como se pode aumentar a produtividade brasileira, que é sabidamente muito baixa?
São a escola e a empresa que promovem as grandes mudanças. Sem a educação não se adquire a ferramenta essencial para aprender direito a profissão. Os conhecimentos hoje estão acumulados nos livros. Aí é que o carro pega. Com a complexidade do sistema produtivo não se consegue aprender assuntos mais técnicos sem o total domínio da escrita e da leitura. Igualmente, os jovens devem ser atraídos para dentro das fábricas, das empresas, pois lá também se aprende, e muito. Aí está o crime que essa Lei do Jovem Aprendiz comete. O grau das exigências legais que recaem sobre quem recebe o aprendiz faz com que seja mau negócio recebê-lo.
Se a fábrica tem uma crise, como a que ocorreu no governo Dilma, provocando uma queda de 30% na demanda, o empregador fica na contingência de ter de mandar gente embora. Mas, tem que dispensar o cara que produz. O aprendiz, que nada produz, fica na empresa porque ele tem um contrato que não pode ser quebrado. Esse jovem trabalha a metade do tempo. No emprego, ele não pode pegar uma caixa ou subir em uma escadinha. Sendo assim, sua contratação é um péssimo negócio para a empresa.
A empresa só tem aprendiz porque é obrigada, mais do que obrigada. Vigora no Brasil um sistema cuja equação está desequilibrada. Na Alemanha, mais da metade dos meninos de 16 para 17 anos, em vez de irem para o ensino médio, vão para o sistema de aprendizagem, começando com um salário bem inferior ao dos adultos. Podem fazer tudo o que esteja dentro de uma faixa de segurança razoável. Além disso, o jovem pode até mesmo ter que varrer o chão. Mas, a empresa tem que lhe ensinar o ofício, o que ficará demonstrado por uma prova rígida que faz ao fim do programa. A equação bate: beneficio de cá, benefício de lá. É bom para a empresa, que paga apenas dois terços do salário. Sendo assim, é interessante receber um aprendiz. E é bom para o aprendiz, que aprende um ofício e adquire experiência de trabalho ‘de verdade’.
Fala-se muito na necessidade de mais escolas técnicas, mas sequer estruturamos um sistema adequado para o jovem aprendiz.
Exatamente. E a escola técnica é uma escola que está no limbo. Não sabe se é uma escola acadêmica, se é uma escola para preparar para a universidade, ou se é uma escola profissional. Isso tudo agravado pelo fato de que matamos a aprendizagem na empresa, como consequência de uma legislação cretina. O jovem aprendiz tem mais estabilidade do que o empregado que faz o produto vendido. Ele é ‘imandável’ e desmotivado.
Como assim?
Vou falar de uma pesquisa que conduzi no Paraná. Uma fábrica de móveis recebe 15 aprendizes de marcenaria. Isso porque é obrigada. O que ela faz? Manda os 15 para o escritório, para o almoxarifado, para a expedição. Então acabam ficando lá dois ou três anos, sem nunca ter ido à oficina de marcenaria. Isso deixa o jovem ‘pê’ da vida, porque queria ser marceneiro, e, no final da história, saiu da aprendizagem em marcenaria sem pregar um prego. A empresa não tem o que fazer com esse rapaz no escritório. Os empregados, que se matam de trabalhar, ganham o mesmo salário do aprendiz. Eles têm ódio dos aprendizes. E os aprendizes têm ódio dos empregados, porque os empregados têm ódio deles. E a empresa acha tudo aquilo uma m..., mas é obrigada a receber.
O aprendiz não pode lidar com as máquinas?
Não pode. Só pode entrar em locais em que as máquinas estiverem lacradas pelo Ministério do Trabalho. Coloca-se um selo para garantir que a máquina não funciona. Para o jovem chegar perto dela, tem de estar permanentemente desativada. Que industrial vai fazer isso? Como produzir com máquinas lacradas?
Isso a pretexto de periculosidade?
Periculosidade. Só que um aprendiz equivalente, na mesma indústria na Europa, trabalha e não tem acidente. Periculosidade é o jovem desempregado na rua, aprontando. Mas não pode, em uma fábrica decente brasileira, que exibe boas condições de trabalho e ambiente.
Estamos com a pauta invertida, ao pedir mais escola técnica, enquanto existe um inadequado programa de jovem aprendiz?
Não. Precisamos também de mais escolas técnicas, certamente. Mas, as escolas técnicas necessitam ser repensadas, porque elas são quase que um puxadinho de uma escola acadêmica tradicional. Requer-se o mestrado dos professores das escolas técnicas federais. Falemos de solda. Para ser soldador, precisa passar 500 horas queimando eletrodo, e mais umas 200 aprendendo a ser instrutor de solda. São 700 horas. Como é que se enfia 700 horas em um currículo de escola técnica, que já está congestionado com o ensino médio? Então, quem sabe não pode ensinar, e quem ensina não pode saber, porque não cabe no currículo a experiência prática necessária. Como é que se forma um ferramenteiro? Se alguém resolver fazer um curso de ferramentaria, no nível técnico, não vai conseguir. Portanto, as escolas técnicas acabam por ter uma alma cujo ethos é acadêmico. Pela tradição, o professor da área acadêmica tem mais diplomas, mais status, caminhando pelos corredores de peito estufado. Se existe um instrutor, é aquele pobrezinho, de aventalzinho azul e meio desenxabido. A escola está dizendo para os alunos: olha, esse negócio de trabalhar na oficina não é coisa boa.
E na da área gastronomia, como pode se dar a formação técnica?
O que se tem na gastronomia são cursos pós-médio. Ou, então, fora do circuito acadêmico. A maioria deles ignora a lei e não concede diplomas com validade legal. Mas, na verdade, isso não importa. O que realmente conta é o resultado. Sendo assim, os instrutores são práticos. Funciona muito melhor. Não se contrata um professor de cozinha que não tenha vindo de um bom restaurante ou hotel. A gastronomia é o contraexemplo da ditadura dos diplomas. Veja a quantidade de grandes chefs que não fizeram qualquer curso formal de cozinha.
Aprenderam com um mestre de ofício. Olha o tanto de gente que o Ivo Faria (proprietário do restaurante Vecchio Sogno, em Belo Horizonte) formou na sua cozinha. E olha a educação acadêmica do Ivo. Praticamente nenhuma. É só prática. Na cozinha, há uma real valorização do que interessa. Se você vai fazer um ‘sauce hollandaise’ e talhou, está tudo está perdido. Vai fazer um bife. Solou, acabou. Na cozinha o feedback (resultado) é instantâneo. O cliente reclama, ou não volta. Daí que os grande chefs ficam na porta da cozinha, verificando cada prato que sai. Forma-se um médico, e não se sabe quantas pessoas ele vai matar no ano seguinte. Forma-se um economista. Ele se aposenta sem que saibamos se chegou a entender alguma coisa do assunto.
Aliás, esse contato permanente do profissional da alimentação fora de lar com o mundo real se dá, inclusive, nas relações comunitárias. O dono de um bar ou restaurante é um elo com o seu bairro ou parte dele. Dentro da Abrasel, cogita-se de se institucionalizar essa função.
Acho muito interessante. Eu nunca havia pensado no bar como correia transportadora para lubrificar e aperfeiçoar relações comunitárias, mas me parece bem interessante. E há bares e bares. O bar do aeroporto é uma coisa; nem olhamos a cara de quem nos serve, e vice-versa. O bar do bairro é outra, pois acaba sendo uma ‘semi família’. Lá encontramos com os amigos. E os caras que estão no balcão são parte desse ambiente. É uma forma de se capitalizar a simpatia brasileira, presente tanto no restaurante quanto no barzinho simples. Na cultura americana, o ‘barman’ vira quase que um confidente. E aqui também ocorre alguma coisa nessa direção. Mas é diferente. Aqui se soma simpatia e se subtrai profissionalismo, comparando-se com o bar dos Estados Unidos. Eu diria até que há uma hierarquia entre o ambiente profissional do bar no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa. No bar brasileiro há, no meu entendimento, um grau muito menor de profissionalismo, comparado ao dos americanos. Nos Estados Unidos, tem-se um pouco mais de profissionalismo, mas não muito, e um pouquinho de simpatia. E na Europa há total profissionalismo e muito pouca simpatia, a não ser em uma comunidade muito fechada. Se conseguirmos conciliar o profissionalismo europeu com o calor humano do Brasil, teremos uma solução imbatível.
Um dos entraves no setor é a quantidade de leis, as mais desencontradas, que brotam das câmaras municipais. Isso é também um entrave à produtividade.
Há muito pouco ativismo – ou zanga – na sociedade brasileira para se contrapor ao vendaval de leis. Essa é uma herança maldita da França e de Portugal. Nós ‘colamos’ desses dois países, em vez de sermos influenciados pela cultura saxã. Portugal é, com a sua conhecida compulsão por leis, uma caricatura ampliada da França. E o Brasil tornou-se uma caricatura ampliada de Portugal. Levamos a complicação ao extremo. Uma das razões que explicam a popularidade de Bolsonaro é que ele prometeu dar a marcha à ré na complicação burocrática.
O burocratismo é menor entre os protestantes, como aponta o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no seu livro ‘Crise e Reinvenção da Política no Brasil’. Ele chama a atenção para a capacidade agregadora das diversas vertentes dos neopentecostais, que, como escreveu, são menos hierarquizadas do que a igreja católica.
Em última análise, até os neopentecostais são descendentes tropicalizados dos reformadores Martinho Lutero e João Calvino. Estão trazendo um pouco da ética protestante, a ética do trabalho, da coisa bem mais rígida, mais levada a sério. Vem junto um moralismo que vale em si. O protestantismo tradicional dos batistas, metodistas, presbiterianos e outras denominações perdeu público ultimamente, mas teve um impacto muito bom no Brasil, porque suas escolas alcançaram áreas muito remotas do interior. Historicamente, o protestantismo acabou difundindo a educação nos países em que se estabeleceu com mais força. A grande liderança educativa vem do protestantismo, porque nele se impõe a leitura da Bíblia. Nesse plano, a educação é um meio, não um fim.
Eu estava conversando com uma finlandesa, professora universitária, que me dizia algo bem curioso. Na Finlândia, não passou qualquer lei obrigando a alfabetização. Mas, o que acontecia? O pastor não realizava o casamento se os noivos não soubessem ler. A determinação tinha como justificativa a obrigação de que todos os casais precisavam ler a Bíblia para os filhos. Desta forma, a Finlândia passou a ter a alfabetização universal por razões religiosas. Junto com a educação, o protestantismo de Lutero e Calvino valorizou o trabalho e as virtudes tradicionais. No serviço, não é preciso vigiar, porque o que se pratica é a velha honestidade. Alguém diz que vai pagar, e paga. Diz que vai fazer, e faz. Uma pessoa diz à outra: vou lhe ajudar porque confio que você vai me ajudar, quando eu precisar.
A sua opinião é de que se deve dar mais ênfase ao aprendizado profissional dentro das empresas.
É o que falávamos do que ocorre com os instrutores práticos, como os chefs que se tornam mestres de ofício nos cursos de gastronomia. Eles ensinam não só as técnicas, mas os valores, formando a ideologia da profissão. É a ideia de que tem que se fazer certo, porque só tem um jeito de fazer, que é o certo. E no dia a dia é você quem faz, e ninguém precisa vigiar, porque você não concebe fazer errado. Isso, então, é uma doutrinação, que começa ao longo de todo o processo de formação.
Onde começa isso tudo?
Até hoje existem corporações de ofício medievais na França e na Alemanha. Essas corporações pegam o menino de 16 anos para iniciar seu aprendizado com um mestre. Na França, após um ano, o aprendiz muda de cidade e muda de mestre. E continuam as mudanças até que adquira as competências profissionais esperadas. Tradicionalmente, durava sete anos. Atualmente, são de três para quatro. No passado, o sistema de seleção para ver quem podia ser aprendiz era baseado nos dotes morais da família; nada de prova de francês ou de alemão. Tinham que ser famílias de bem, íntegras. Sem isso não se entrava nas corporações. De certa forma, é o que permanece até hoje. Na Alemanha, cada profissão mantém a tradição de possuir um uniforme próprio. Estamos falando de tradições medievais que sobrevivem até os tempos atuais. São ternos pretos de veludo liso, boca de sino, colete com botões de prata e outros detalhes, próprios de cada profissão. Os carpinteiros têm um chapéu de aba larga, preto, e uma bengala toda enrolada. Outras profissões têm outros modelos de chapéu, como o limpador de chaminé com sua cartola. Vestidos assim, saem à rua com muito orgulho. Várias vezes, já encontrei na Alemanha pessoas vestidas com essa fantasia. Trajando as roupas da profissão, se encontram nas cervejarias, para aquelas grandes bebedeiras.
Enquanto isso, o professor da escola técnica federal só é admitido se tiver formação acadêmica específica.
Imagine-se que o Gerdau (Jorge Gerdau Johannpeter, presidente do Conselho de Administração do Grupo Gerdau) se aposenta, e diz: eu queria ser diretor de uma escola técnica federal. Não pode, porque não tem doutorado. Imagine-se que o Ricardo Semler (presidente do Conselho e sócio majoritário da Semco Partners) resolva ser diretor de uma escola técnica federal. Ah, não pode; não tem doutorado. Peter Drucker (que faleceu em 2005, uma semana antes de completar 96 anos de idade, e é mundialmente considerado o pai da administração moderna) não poderia dar aula em uma escola de administração aqui de Belo Horizonte, porque ele era advogado. A lei faz tudo para atrapalhar. A sociedade brasileira herdou de Portugal esse talento para criar regras que complicam tudo.
E como fica a sociedade brasileira nesta era digital?
A informática não perdoa a falta do que se aprende na escola. Se não entendeu o que leu, aperta-se o botão errado, recebe-se a instrução errada. Para um uso criativo, é extremamente exigente de raciocínio. O silogismo faz parte da dieta cotidiana. (No dicionário Aurélio, ‘silogismo’ é uma dedução formal tal que, postas duas proposições, chamadas premissas, delas, por inferência, se tira uma terceira, chamada conclusão). No Brasil, usa-se muito o computador, sem que se tenha aprendido a ler e a escrever e a pensar corretamente. Até o borracheiro tem computador. Mas não é um uso inteligente; é tosca e pouco produtiva a sua missão.
E o que se passa no comando das grandes empresas, novas ou tradicionais, neste mundo novo?
Há uma pesquisa americana muito interessante, na qual se fez a seguinte pergunta: na sucessão familiar dentro das empresas, quais são as que se dão bem e quais se dão mal? O resultado é interessantíssimo: deram-se bem as empresas cujos descendentes dos donos passaram por uma das 100 melhores universidades americanas – e aí estamos falando de um total de 4,8 mil cursos superiores. As outras se deram mal. Vejamos um exemplo curioso: quando se tomam os seis maiores bilionários das grandes multinacionais tecnológicas de hoje, cinco passaram por Harvard e Stanford, e um por Chicago. Hoje, já não há mais Francesco Matarazzo (agricultor do sul da Itália, que ao emigrar para o São Paulo acabou criando o maior grupo industrial da América Latina).
O ambiente familiar influi na educação das crianças?
Muito. Um pai que não valoriza a educação, assim reage quando o filho lhe faz uma pergunta: ‘não seja abelhudo, menino’. Ou: ‘cala a boca, menino’. O outro que valoriza vai dizer: “seja abelhudo, meu filho; pergunta tudo, questiona tudo”. Dia desses, fui ao clube aqui perto de casa. Dentro da piscina estavam o pai e seu filho, de uns oito anos de idade. O pai tomava a tabuada do filho. Aqueles que não valorizam a educação vão achar isso um absurdo. Décadas depois, os filhos deles terão como chefes gente com o perfil de quem toma a tabuada na piscina.
De onde vem uma boa base educacional nas famílias, do ambiente ou da renda?
Tudo está ligado. A renda permite comprar livros e colocar o filho em uma boa escola. Mas a educação do pai leva-o sempre a fazer perguntas ao filho. E responde o que o filho pergunta, explicando por que ele está dizendo isso e por que ele está fazendo aquilo. Geralmente, um menino de uma família de classe média, no meio de uma mesa com dez pessoas, abre a boca e fala. Em famílias menos educadas, isso é inadmissível.