Em entrevista ao podcast O café e a Conta, o diretor executivo do Mundo MESA e da revista Prazeres da Mesa, Georges Schnyder, comenta o movimento Slow Food desde sua origem na Itália até o contexto atual brasileiro
Engenheiro de produção e pós-graduado em marketing e finanças, Georges tem uma história marcante vinculada à indústria de alimentos. Fortemente engajado com o desenvolvimento sustentável, seu projeto de manejo do açaí no estado do Amazonas gerou grande impacto nas comunidades locais e remodelou o consumo do produto em todo o país.
Sócio-fundador do Instituto ATA, que foca na relação do homem com o alimento e em ações direcionadas às cadeias de valor envolvidas em seus processos, é também conselheiro internacional e membro do comitê executivo do movimento Slow Food, além de presidir a Associação Slow Food do Brasil, que busca a democratização de um alimento bom, limpo e justo.
Por meio de sua experiência e atuação no movimento, Georges faz uma análise histórica que revela as razões pelas quais o modelo alimentar que temos hoje se tornou o padrão e por que ele já não atende às necessidades do mundo.
Georges também demonstra as consequências da implantação deste modelo, que ocorreu num contexto pós-guerra mundial. Ele revela o impacto da decisão política que fez com que este sistema vigorasse e seu efeito na diversidade de alimentos, que caiu drasticamente. A questão, no entanto, ainda vai além: essa pobreza quando se trata da variedade é um fator capaz de modificar a própria identidade cultural de cada país.
Veja a entrevista abaixo e entenda melhor:
Como começou esse movimento?
A história já tem uma bela data. O slow food nasceu em 1986, na Itália, e no ano de 89 foi internacionalizado em Paris. É um dos primeiros movimentos por um sistema alimentar diferenciado. O slow food se opõe ao fast food e, a partir dessa noção, podemos avançar para outras discussões.
Roma tem um cartão postal chamado Piazza di Spagna, onde ficam uma escadaria maravilhosa, em que jovens do mundo todo se reúnem, e uma fonte. Em 1986, o McDonald’s abriu a primeira loja na Itália e colocou um M bem grande que aparecia na foto da escadaria. Então, ninguém mais conseguiria tirar foto ali sem que aparecesse o M na lateral.
Os jovens da época, ativistas, filósofos, jornalistas, sociólogos e pensadores ficaram assustados com isso, no sentido que “como é que estão mexendo no cartão postal de Roma? ”. Eles foram para a frente do McDonald's, montaram umas mesas imensas e as mammas italianas começaram a fazer massa.
A massa era oferecida para as pessoas que entravam no McDonald's e era feito o questionamento: “vocês preferem fast food ou a nossa slow food, que é essa comida que a gente faz aqui, de origem local? “. E com isso eles ficaram até o McDonald's desistir e mudar de lugar.
O estabelecimento saiu do cartão postal e essa foi a grande vitória. Assim, o movimento criou uma percepção interna de que a cultura, que é a raiz, que é aquela comida local, estava se perdendo. A juventude queria ir no McDonald's e começava a não dar atenção ao próprio sistema italiano original.
O movimento começou, então, com um caráter muito gastronômico, mas imediatamente partiu para as questões políticas colocadas dentro desse contexto, que iam desde a produção, alimentação e cadeia de fornecimento a como tudo isso funcionava.
O slow food cresceu na própria Itália e logo entraram outros pensadores que trouxeram o pessoal do campo dos produtores, aqueles que produziam a pasta, o tomate, os ingredientes italianos.
Isso gerou o formulário de ideias, o que foi fantástico, porque eram todos grandes pensadores e pessoas incríveis. Eles eram liderados pelo fundador, Carlo Petrini, que era um jornalista e ativista social muito importante. Em um dado momento, eles acharam que isso deveria ser realmente um movimento de oposição e fizeram um manifesto.
O Manifesto Slow Food foi publicado em 1989, em Paris. É um texto muito bonito que mostra que a vida deveria ser feita diferente e ter um outro passo, porque aquele em que se estava indo ia acabar com a Terra. Isso no ano em que o termo desenvolvimento sustentável foi criado. O Relatório Brundtland (que disseminava essa ideia) foi criado em 1987.
A ideia para um alimento bom, limpo e justo nascia junto. O bom é por ser bom, o limpo é por ser limpo em relação a como ele é produzido, sem agrotóxicos, diretamente do campo, com cadeias curtas de produção e justo no sentido em que remunera adequadamente as partes envolvidas.
Essa relação era a mais importante, que deveria ser valorizada, o fator justo, que é econômico, o limpo, que é ambiental e bom que é o negócio em si. O slow food realmente foi um precursor dessa tendência.
O movimento então surge pela gastronomia e acaba sendo político, mesmo não sendo necessariamente partidário. Ninguém ali está anti uma bandeira ou outra, mas todos a favor de mostrar uma riqueza que já existe. Também é muito bonita essa fala sobre a regeneração do planeta Terra, é algo que liga a gastronomia ao meio ambiente. Isso na segunda metade do século passado, mas que continua sendo uma pauta atualíssima.
Não há outro caminho que não seja através da regeneração, que é, inclusive, o tema deste ano no Terra Madre, o maior encontro do slow food no mundo.
É um tema que nós já desenvolvemos aqui no Brasil no ano passado, e a ideia é exatamente mostrar que o sistema alimentar que temos precisa ser repensado. Não porque está certo ou errado, mas porque não funciona mais dessa forma. Porque nós temos que ter outras opções.
Em 1946, após o final da segunda guerra mundial e antes da ONU ser criada, a Liga das Nações se reuniu para tratar da fome na Europa e na Ásia. “Saímos de uma guerra. Não tem homem para produzir. Como fazemos para recuperar o poder de alimentação das pessoas? ”
A Alemanha, por exemplo, morria de fome naquele momento, não tinha o que comer e não tinha o que plantar. Havia uma necessidade urgente de fazer as pessoas se alimentarem para sobreviverem, e isso foi discutido naquele momento.
Havia dois sistemas a serem avaliados, propostos pelos Estados Unidos. Um foi apresentado pelas indústrias da guerra, o agroindustrial, focado no que chamavam de revolução verde. O objetivo era produzir comida para o mundo inteiro de uma forma rápida e eficiente. A segunda proposta era produzir uma agricultura local orgânica.
As ideias foram apresentadas para serem discutidas e por muito pouco a agricultura orgânica não foi selecionada. Ela determinava que as famílias deveriam ser apoiadas imediatamente para reaprender a trabalhar a terra de uma forma estruturada. Assim, elas estariam gerando e pagando o seu próprio trabalho, e a produção extra poderia alimentar a família do lado.
O dinheiro que seria colocado na mão das pessoas, das famílias, vinha como uma ajuda humanitária coordenada pela Cruz Vermelha. Tinha todo um projeto em cima disso. Já no outro lado, as grandes indústrias que fizeram os tanques de guerra, os tratores e os explosivos se transformariam em indústria de fertilizantes.
As indústrias químicas da guerra se transformaram e surgiram a Basf, Bayer, Syngenta, DuPont. Elas passaram a produzir os agrotóxicos, os defensivos agrícolas. Tudo isso foi criado num sistema baseado em fazer uma agricultura rápida.
Porém, o que aconteceu? Essa agricultura desconectou o homem da terra da forma como estava antes da guerra. Antes ele produzia, mesmo com a revolução industrial. A partir dessa mudança, a mecânica foi cada vez se desconectar mais, porque a indústria foi buscar seu resultado e criou essa logística de consumo impossível.
Por exemplo, pensando na Barilla, uma marca italiana de massa super conhecida que podemos encontrar no mercado. De onde ela vem? Da Itália? Não. Na Itália, ela planta trigo grano duro orgânico e vende internamente. A marca que vem para o Brasil e para o resto do mundo vende trigo transgênico do Canadá, que é exportado para a Itália e processado. Agora, a marca produz aqui com o trigo que vem diretamente do Canadá.
Isso leva a imaginar como o mundo poderia ser hoje se estivesse mais próximo da agricultura familiar, tão massacrada atualmente e que precisa de um esforço para alimentar o mercado interno brasileiro. E pensando nisso, qual o principal desafio do slow food hoje no Brasil?
Encurtar as cadeias. É preciso aproximar cada vez mais o produtor do consumidor, que no slow food chamamos de coprodutor, porque ele tem que ser responsável por aquilo que consome. Ele é o que ele demanda. O campo deve servir, mas para ele demandar, deve saber o que está comendo e essa relação tem que ser reconstruída.
Isso tem relação com o conceito do quilômetro zero?
Totalmente, é a mesma coisa. Um exemplo muito importante é que antes da década de 70, nos Estados Unidos, existiam 5000 variedades de maçãs diferentes, que recebiam o nome da família. A família MacDonald, a família Mackenzie, tinham sua espécie de maçã com um gene próprio.
A variedade era imensa. O que aconteceu de lá para cá? Nós fomos perdendo essa diversidade para o mecanismo de construção. Precisava-se de cada vez mais efetividade em termos de produção. Então, variedades que têm mais produção, menos problema de transporte foram sendo selecionadas para ocupar espaços maiores. Se antes eram 5000, hoje são cinco variedades comerciais de maçã.
Essa pobreza de diversidade afetou a tradição americana da apple pie (torta de maçã), em que se colocava a torta na janela e cada uma tinha um cheiro e um gosto diferente. Hoje em dia é muito homogêneo.
Quando você perde diversidade, você perde a sua identidade. Em seguida perde a gastronomia e, entrando no meio dos restaurantes, se perde também a razão de ter o restaurante. Ele tem uma função de restauração. Não é alimentação, apenas nutricional. Para isso serve a ração.
Tem gente que vive de whey, de proteína em pó. O restaurante é um lugar para restaurar a alma, restaurar as pessoas e as relações. E, para isso, você precisa sentar numa mesa e experimentar essa complexidade, essa educação do gosto de que falamos no slow food. Aí está o valor do restaurante.
Quando não damos mais atenção à nossa culinária e ingredientes regionais, essa cultura da diversidade vai se perdendo.
Com isso, se perde também o contato e a relação. Se não sabe mais cozinhar, você fica dependente de uma compra no mercado, e o que ele vai te oferecer não é o que você quer, é o que estiver lá. O que a indústria acha que é bacana te entregar.
Hoje você entra no supermercado e é muito triste. Fora frutas, verduras e alimentos frescos, que também já têm seus problemas, mas de qualquer forma vêm do campo e ainda vêm, todos os outros produtos que estão lá são grãos.
70% dos produtos, ou alimentaram a carne industrializada ou são cereais, soja, trigo, milho, canola. Mesmo essa tendência vegana de carnes plant based: são proteínas trabalhadas de soja, de ervilha, ou outros num processo industrial que está desconectado com a natureza.
Você está comendo ultraprocessados, sendo alimentado por commodities, que, na verdade, são produzidas em grandes quantidades e transformadas. E é dado um sabor diferente para cada, porque é quase tudo a mesma coisa. Tudo é um mesmo líquido.
É quase como se fosse feito num laboratório. É uma experiência sensorial muito pobre e que reduz a qualidade de vida. Tudo isso volta ao mesmo caminho que já tínhamos mencionado: a conclusão é que tudo é política, além de uma questão de identidade gastronômica, e que diz muito sobre a nossa sociedade e sobre a construção de um país que a gente quer que continue existindo para as próximas gerações.
É como o caso do açaí, por exemplo. Eu sou engenheiro de alimentos e no final da década de 90 trabalhava numa indústria que produzia palmitos na Ilha do Marajó. Financeiramente, essa indústria não estava bem e resolveram vender essa operação. Eu e um amigo compramos e entramos como sócios, porque eu adorava a Amazônia.
O palmito era poda do açaizal e tudo era feito com manejo sustentável. Porém, éramos só nós, então precisávamos de outras receitas. A que tinha era do próprio fruto do açaí, que todo mundo em Belém do Pará tomava.
Eram bacias de açaí, como se fossem bacias leiteiras, e todo mundo comprava um ou dois litros todo dia no mercado para levar para casa. Então pensei “por que isso não pode levado para outros mercados? “ Tentamos. Fizemos uma unidade industrial pequena para processar a polpa e começamos a trazer para o sul do país.
Trouxemos para as casas de suco aqui de São Paulo e do Rio de Janeiro. Só que aquilo era uma coisa terrosa, muito forte, muito grosso e as pessoas não conseguiam se adaptar imediatamente. Com isso começamos a entrar num momento ruim. Esse negócio não vai dar certo.
Mas tivemos uma ideia: como as crianças do Norte aprendem a gostar do açaí? Elas comem desde a infância. Lá, eles adoçavam com o xarope de guaraná para as crianças. Precisávamos educar o gosto desses adultos e começamos a mandar o açaí normal e o açaí com o xarope de guaraná. E foi um sucesso. Pegou na veia dos surfistas do Rio de Janeiro.
Nós levávamos os surfistas para surfar pororoca lá no Pará. Os nativos de lá surfavam, tomavam uma tigela de açaí, entravam na água e ficavam quatro horas em cima de uma onda, enquanto o surfista do Rio chegava, comia o macarrão, entrava e ficava meia hora em cima da outra.
Entendeu-se então que o açaí dá energia e foi criado um mercado. Isso mostra que a alimentação está no cerne do que você faz, é central paro o ser humano. E o que eu sinto hoje é que as pessoas não se percebem apropriadas do alimento da forma como elas deveriam ser, e por isso é político.
Nós vivemos de ar, água e de alimento. Pelo ar, você não está pagando ainda, muito embora o pessoal lá no Amazonas tenha sofrido pela falta dele. Água já é um bem comercial, é uma commodity. E com o alimento é pior ainda.
Sem esses três elementos, você morre. Isso deveria ser um direito universal. Então a fome não pode existir, não tem sentido existir. Alimentação balanceada e segurança nutricional são outro aspecto. Tudo isso é um jogo político e econômico.
É isso que o slow food pretende e faz muito bem, advocacy para proteger essas pessoas e essa diversidade, que é necessária para o planeta e os negócios existirem.
A Abrasel, por exemplo, faz um trabalho que vai desde um pequeno bar até o vendedor de uma rede. A diversidade faz parte do contexto humano, não podemos limitá-la. Mas é o que está acontecendo. O poder da estrutura do sistema alimentar vigente não dá espaço a um diferente.
É preciso apontar uma nova opção de sistema quilômetro zero, mais voltado ao território, à alimentação familiar e ao resgate do conhecimento.
Você também ajudou a fundar o Instituto Ata, que as pessoas conhecem pelo Alex Atala. Na série Chef’s Table, da Netflix, o episódio do Atala conta a trajetória dele como chef de cozinha e também a criação do Instituto Ata, que tem tudo a ver com essa questão da diversidade, da preservação e o papel que a gastronomia também tem.
O Instituto desempenha uma função que mais pessoas deveriam conhecer, inclusive empresários de bares e restaurantes, porque às vezes temos sentimentos que ainda nos falta nome. E o papel do Atala também é dar nome ao sentimento que pode criar cada vez mais força dentro do nosso setor de alimentação fora do lar.
Sem dúvida, o Instituto Ata foi montado com o propósito inspirado na vontade do Alex de deixar um legado. Algo que fosse além da altíssima gastronomia, mas que tivesse essa conexão. Ele chamou pessoas muito importantes do meio e me convidou no sentido de fazer uma curadoria do que seria, de fato, um movimento que pudesse ser exemplar nessas relações.
Dentro do Ata existe uma frente indígena muito forte, dirigida pelo parceiro Beto Ricardo, que é ligado ao Instituto Socioambiental (ISA). Lá, trabalhamos muitas questões de culturas indígenas, como a relação que os povos têm com o alimento, e formas de preservá-las perante o mercado de gastronomia.
A pimenta Baniwa, por exemplo, que é um dos primeiros produtos que o Instituto Ata desenvolveu junto com o povo Baniwa, no estado do Amazonas, foi um transformador na vida dessas comunidades. Simplesmente transformamos algo que eles já faziam, que é a Jequitaia, uma mistura de pimentas secas que alcançou o mercado e tem um sabor incrível, e é uma iguaria gastronômica usada agora em vários restaurantes.
É um produto muito pequeno, mas o valor agregado da cultura e do conhecimento é todo deles e, tirando o intermediário dessa relação, o povo indígena Baniwa, que está produzindo nas casas de pimenta, tem realmente uma forma de sustentar o seu modo de vida e cultura.
Eles produzem, protegem o ambiente onde estão e quem paga essa conta são os gourmets, as pessoas que estão nos restaurantes comendo esse produto maravilhoso. Isso não é nada diferente do que a Itália, a França ou Portugal sempre fizeram com os seus produtos. E o fato é que o Brasil tem uma dimensão continental e uma história muito curta de vida.
O que seria da Itália se ela não tivesse desenvolvido a pasta, que não foi nem ela que criou? Ela trouxe da Ásia, e desenvolveu o tomate, que veio do Peru. É algo absolutamente fora do nosso contexto. Esses elementos estão completamente deslocados, porém a cultura construída sobre a gastronomia italiana tem uma história tão ancestral que isso se torna, de fato, a gastronomia tradicional deles.
No caso da gastronomia francesa, os queijos e embutidos são de uma força única e sustentam o campo da diversidade. Na Europa não se come transgênicos, é proibido. É uma dicotomia estranha. Aqui nós comemos e produzimos. Para quê? Para engordar os porcos que estão sendo consumidos em outros países, ou as galinhas, os frangos?
E ainda existe fome no Brasil mesmo assim. São 33 milhões de pessoas que passam fome. Tem uma desconexão muito errada que precisa ser corrigida e rápido.
A ideia que fica, por trás de tudo isso, é rever o sistema do qual você realmente se alimenta e de que o seu negócio é feito, que atualmente está fadado a não ter sucesso. As tendências de mercado hoje olham exatamente para isso, e é aí que o dinheiro está rolando.
Os empresários têm que estar cientes de que o negócio deles não é o negócio de alimentar as pessoas, mas de dar uma experiência com o alimento, com cultura e com algo a mais para as pessoas que estão comendo.