Por Danilo Viegas e Flávia Madureira
Em entrevista ao podcast O Café e a Conta, chef e pesquisador gastronômico é crítico à falta de apoio do governo aos pequenos produtores, diz que o brasileiro é um “Narcísio ao contrário” e manda o papo reto: temos muito para contribuir com o mundo. E talvez não seja contradição, mas que seja com inovação
Parte da nova geração de chefs brasileiros, o alagoano Guga Rocha é uma metralhadora de ideias. Como chef é reconhecido por sua cozinha criativa, imprevisível, leve e rica em sabores. Como pesquisador, alia sua experiência em mais de trinta países com a atenção pela cultura nacional, tendo ido em busca da origem histórica de nossa gastronomia, com foco na culinária quilombola. Como empresário, comanda a @Tapioteca e abrirá em breve o @João Brasileiro além do trabalho como apresentador, escritor e palestrante.
Mas mais que isso, é dotado também de um senso crítico que não poupa ninguém. Mordaz, ele afirma que o brasileiro é um Narcíso ao contrário (cospe na própria imagem) e reforça sua ideia de valorização da gastronomia nacional: “Temos que, cada vez mais, entender que temos muito para contribuir com o mundo. E talvez não seja contradição, mas que seja com inovação. Trazer o novo e realmente não ter vergonha de pegar o que já existe e melhorar”.
Em entrevista ao podcast O Café e a Conta, Guga falou sobre a diferença entre a gastronomia brasileira e a gastronomia do Brasil, relação entre comida e cultura, o impacto da gastronomia na economia e também sobre as dificuldades do empreender no país. Confira abaixo alguns trechos. O episódio completo pode ser ouvido aqui:
O Café e a Conta: De onde vem essa formação da identidade da gastronomia brasileira?
Guga Rocha: Na verdade, a gastronomia brasileira ainda está em formação. A coisa mais importante que nós temos para dar para o mundo é a novidade. Nós somos o novo, nós somos o que vai trazer o frescor para o mundo.
Todo o calhamaço cultural, gastronômico, histórico, artístico que já existe no Velho Mundo nos atinge de uma forma muito brutal. Se você parar para pensar, num país rico e tropical como o Brasil, um triângulo de cinco metros de Mata Atlântica tem mais biodiversidade do que quase a Europa inteira.
Mas nós só consumimos ervas europeias: coentro, alecrim, tomilho, salsinha, manjericão, sálvia, tudo. Ou do Mediterrâneo, do Sudeste Asiático, mas principalmente da Europa em geral.
O Brasil está em formação, e a célula mater da cozinha brasileira realmente é essa tríade do português, do africano e do indígena que Câmara Cascudo descreveu tão bem, como tantos outros.
E existe uma diferença entre a cozinha brasileira e a cozinha do Brasil. Eu luto muito para que a gente fale mais da cozinha do Brasil do que da cozinha brasileira. O que é a cozinha brasileira? Ela pode ser algo que está no nosso subconsciente, como Casa-Grande/Senzala, que é a cozinha do povo, feita dessa mistura do português, do africano e do indígena.
Mas, na verdade, é muito mais que isso. A cozinha brasileira vem da pessoa que chegou muito tempo depois, vinda de lugares que não pensávamos que teriam chegado aqui, como por exemplo, hoje, os venezuelanos.
Se pararmos para pensar, o Brasil tem a maior colônia italiana fora da Itália. Em São Paulo, se todos que pudessem pegar documento italiano fizessem isso, teria mais italianos do que em Roma. Temos uma colônia libanesa gigantesca, uma colônia japonesa gigantesca, chinesa, de vários lugares. Várias etnias chegaram aqui depois dessa tríade inicial e estão compondo essa nova cozinha do Brasil.
Pensando mais profundamente, o que é o sushi no Brasil? Será que é sushi mesmo? Será que a pizza no Brasil é pizza mesmo? Os espanhóis pegam uma sobremesa clássica francesa chamada crème caramel e transformam na crema catalana, falam que é da mesma época e lutam por isso. Pegam o cheesecake, fazem uma torta basca, vira um clássico espanhol. Nós chamamos sempre pelo nome original, temos a tendência de fazer essa referência irreverente. Então é isso: estamos em formação e é muito complexo definir o que é, o que está certo e o que será.
É tudo muito vivo, mas falta uma valorização da nossa parte, de saber que o nosso sushi, com algumas pitadas tropicais, nada mais é do que um sincretismo gastronômico. Não devemos ter vergonha de falar “o japonês não come isso”. Não, o japonês não come, mas é muito bom.
Não posso falar em nome de todos, mas os chefs de cozinha brasileiros, em sua grande maioria, têm preconceito. Um exemplo clássico é o queijo catupiry. Se ele fosse um queijo do sul da França chamado catupirì, teria em tudo no Brasil. Ia ser caríssimo e todos iam consumir. Eu vi um crítico gastronômico, um tempo atrás, falar que catupiry é muito gorduroso. E queijo brie não é gorduroso? O brasileiro é o Narciso ao contrário, cospe na própria imagem. Temos que, cada vez mais, abraçar essa imagem e entender que temos muito para contribuir com o mundo.
E talvez não seja contradição, mas que seja com inovação. Trazer o novo e realmente não ter vergonha de pegar o que já existe e melhorar. Nós também podemos pegar coisas e piorá-las, mas em sua grande maioria, a inovação é muito positiva.
Como podemos pegar o tradicional e atualizar para ficar mais contemporâneo de uma forma que contribua para o processo de construção da nossa identidade? Quais são os principais desafios?
Isso parte muito do empreendedor. Vou dar um exemplo meu: nós investimos em uma empresa chamada Tapioteca, uma franquia de fast food de tapioca que abrimos em um dos aeroportos em Congonhas e fomos expandindo pelo Brasil.
A ideia é levar a Tapioteca para fora, e por que isso? No mundo inteiro, o consumidor mudou. Antigamente, quem era classe média alta, rico, ia num restaurante chique francês, pedia um tournedos rossini, filé que vem com o foie gras em cima e o molho pesado. Depois, pedia uma tartelete de morango, comia e ia embora feliz depois de ter tomado um vinho péssimo alemão de garrafa azul.
O consumidor de hoje em dia corre triatlo ou não consome glúten e lactose. Mas não estamos aproveitando, nessa mudança humana, a possibilidade de o Brasil se tornar o top na frente de todos os países do mundo, porque nossa cozinha tradicional é sem glúten e lactose.
Não existiam vacas no Brasil e não tínhamos nada com trigo. A tapioca é o pão do novo milênio e pode ser um dos produtos mais incríveis do mundo. Está em Manhattan, um dos lugares com mais hype. O pão de queijo é um produto que eu não consigo entender como não dominou a França ainda. Uma vez eu fiz pão de queijo e um chef francês me disse: “é pão e queijo, só que é uma coisa só. Como é que todos os franceses não comem isso em casa todo dia?" Então, falta muito do próprio empreendedor brasileiro: se descobrir brasileiro, precisamos entender as potencialidades das coisas da gente. Mas passa muito também pelo governo.
Eu espero que o governo que vier consiga eleger campeões, como faz com empresas. Dentro do nosso séquito de brasileiros pensantes, das pessoas que pesquisam, pegar essas pessoas e falar “vem cá, me explica como é que a gente pode fazer isso? ”
Não consigo entender como nós não temos ainda produtos brasileiros. Nós temos novidades que ninguém tem em cogumelos, em berries e pequenos grãos. É inacreditável que o Brasil vai realmente terminar de destruir o país inteiro plantando soja. É isso que a gente quer? É muita estupidez, nós temos uma riqueza gigantesca. Temos a Amazônia. Qualquer produto em que você coloque um label “Amazônia“, vende.
Falta então uma política pública-privada, no setor de inteligência do governo. Chamar pessoas. Não estou falando de me chamar, mas de chamar uma Bella Gil, ou quem quer que seja. “Então me ajuda a pensar o Brasil. Em que é que você acha que a gente pode investir? Que frutas que a gente não descobriu? ” Porque quem está no poder não entende.
Agora, falando do empresariado, eu acho que temos que parar para pensar e entender, por exemplo, porque o hambúrguer é o sucesso que é. Foi o que eu pensei quando criei a Tapioteca. Porque ele é muito gostoso, super prático, que suja pouco e o empregado, o motorista e o presidente do banco comem. Ele é democrático e muito calórico.
Quando fazemos as coisas daqui, pensamos que a tapioca é light, tem que ser. Mas não. Podemos fazer tapioca com manteiga de amendoim, com tudo que existe. Tudo que vai dentro do taco, vai na tapioca. Ela é um veículo para o sabor e a temos que pensar nisso pra tudo que há no país. É preciso pensar o Brasil para o mercado, e não tentar adaptar o mercado para o Brasil.
É como o caso da feijoada. Se eu fizer esse prato com feijão branco, frutos do mar e colocar molho de tomate, vou ser crucificado em praça pública. Só que ela não é um prato brasileiro e não foi inventada na senzala.
Feijoada é um prato mouro e vem pela Península Ibérica. Na França, virou cassoulet. Na Espanha, virou cozido madrilenho. A única coisa brasileira no prato é o feijão preto. Então, é preciso desapegar desses clássicos em que as pessoas acham que não se pode mexer. Temos que ter apego às coisas que realmente são nossas: os ingredientes, os insumos e o futuro.
Os países que conseguiram desenvolver a sua identidade gastronômica também ousaram mexer nesse cânone sagrado e ter releituras contemporâneas, mas respeitando quem os trouxe até aqui. No exemplo do tucupi, que é um símbolo nortista muito forte, ele não chega no sudeste, ou chega com ares de excentricidade, como se fosse uma coisa do terceiro mundo aqui no Brasil. Falta o que a MPB falava desde a década de 60, que é o Brazil com z conhecer o Brasil com s e não ter vergonha disso.
Os italianos são a comfort food do mundo. Se você está na Guiné-Bissau, na Tailândia ou no Burundi e não quer da comida local, você come a comida italiana. E ela é feita com base em três ingredientes: tomate, batata e milho, que são coisas nossas.
Essa cozinha, como a gente conhece hoje, existe a partir de 1500, é uma comida moderna. Ela se inventou utilizando insumos nossos. Se você faz uma pizza no Brasil e coloca carne seca, é um absurdo. Absurdo por que? Os italianos pegaram um pão árabe chamado pita e colocaram tomate, que vem do México, mas nós não podemos fazer.
Como é que não existe um projeto governamental para o tucupi dominar a Ásia? O tucupi é o shoyo do próximo milênio. Ele tem umami, que é o que todos os asiáticos buscam, que é esse quinto gosto, encontrado no shoyo e no molho de ostras. Eles são loucos por isso. O que existe é um governo feito por burocratas que não conhecem o próprio país e nunca sujaram o pé no mangue.
Esse é um dos grandes problemas da nossa cozinha. As pessoas me perguntam porque é que o Brasil não tem queijos como os da Europa. Quem produz queijo lá, faz há gerações e sabe que vai conseguir vender. Se o produtor brasileiro colocar o seu queijo para cura por três meses, não paga o empréstimo do BNDES que ele fez. Ele quebra, ele morre de fome.
Não tem como pegar o leite que ele produziu e transformar num queijo que cure muito tempo, então tudo é um ciclo vicioso. O queijo brasileiro está mudando, evoluindo. Está cada vez melhor, ganhando prêmios internacionais, mas é muito pouco.
Para um pequeno produtor que produz o seu queijo no Serro, em Minas Gerais, vender o seu o seu produto em São Paulo, ele tem que vencer a burocracia. E além da questão do agro, existem várias outras bandeiras que deveriam ser não um plano de governo, mas um plano de país, como a valorização da agricultura familiar e de todos esses insumos que podem ser exportados. Ao ajudar na construção dessa identidade, a economia também iria girar.
Muita gente está sendo paga com dinheiro de fora para manter isso. Somos um país continental. O imposto sobre vinhos, por exemplo, não tem lógica. O vinho nacional de qualidade deveria ser vendido no supermercado a cinco reais, mas não é possível competir. O Brasil é um país que importa mesmo tendo o Vale do São Francisco e a região sul. Hoje em dia, Minas Gerais e São Paulo estão produzindo vinho, mas consumimos o chileno, argentino, uruguaio.
Também há outro fator que é o brasileiro não valorizar o que nosso. É preciso valorizar mais o regional. Quando você vai para um vilarejo no sul da França com 30.000 habitantes, encontra um produto que só eles têm, e que você pode levar. Alagoas tem mais de 1 milhão de habitantes. Fora o artesanato, o que é que se consegue levar daqui?
Tem que haver uma construção, empírica e física do que será esse país. Como podemos criar cadeias produtivas rápidas e práticas para começar a vender? Com facilitação de leis, facilitação de empréstimo.
Um empresário brasileiro que começa a gostar de gastronomia vai abrir uma hamburgueria, não uma tapiocaria. Os prêmios de gastronomia nacional não têm a categoria da melhor tapioca, mas têm da melhor pizza, do melhor hambúrguer. Até isso a gente a gente não valoriza.
A saída está relacionada ao pensar global e agir local? O João Diamante falava muito sobre a construção da gastronomia de pessoas para pessoas. Seria ingenuidade acreditar nessa união dos chefes com os empresários? Há um lobby que pode ser feito a nível de Brasília? Você é otimista quando pensa na gastronomia brasileira a médio e longo prazo?
Eu não sou otimista. Inclusive, estou cada vez mais pessimista. O brasileiro tem uma característica que é sensacional, a adaptabilidade. Somos talvez o ser mais adaptável do mundo por sermos esse povo multiétnico, inteligente, cheio de jogo de cintura. E essa adaptabilidade está fazendo com que abram mais restaurantes de ceviche no Brasil do que de acarajé.
O brasileiro consegue se adaptar à demanda mercadológica em vez de criar uma demanda mercadológica. Somos o país que criou a bossa nova, o estilo musical mais fantástico do mundo, gravado por Frank Sinatra. E não tem um bar de bossa nova em que você pode ir direto no Rio de Janeiro.
Mas tenho também uma grande esperança. Realmente acho que as coisas só vão mudar quando entrarem diretamente na pauta do governo. A França é um país que vive disso. Eles vendem o champagne e só pode ser da região de Champagne, com o terreno mágico, e só lá se faz aquilo.
Vamos criar a mesma coisa por nosso leite de coco, para a Amazônia! Vamos explicar o que é o cerrado para o mundo. Agora, para isso acontecer, tem que ter junto o cinema. A monarquia, por exemplo, nada mais é do que uma ditadura absolutista que a Disney fez todos acharem que era legal. Temos que fazer isso para as nossas coisas, vender o nosso mundo mágico.
A cozinha brasileira já está paulatinamente sendo melhorada, está também sofrendo uma “pasteurização”. Os grandes chefs fazem exatamente o que todos os outros grandes chefs fazem, só que com produtos nossos. Isso não é a criação de uma cozinha, isso é pegar algo que já existe e fazer com os nossos produtos.
Como a Roberta Sudbrack fala, temos que começar no campo, plantar nossas ervas e consumir os nossos produtos. O Peru consome as próprias batatas, os tipos de milho diferentes, as ervas, frutas, os pescados.
Assim deve ser a cozinha brasileira. Voltando ao começo, a cozinha do Brasil vai bem, e ela é tudo. Todas essas outras influências e todos esses povos do mundo inteiro. Mas não temos representatividade nas grandes capitais do mundo.