Por Flávia Madureira
Casos de racismo continuam frequentes no país, e estão presentes até mesmo no setor de alimentação fora do lar, conhecido por seu cunho democrático e inclusivo
O setor de bares e restaurantes reflete a realidade brasileira, com toda sua pluralidade. Democrático e com seu amplo alcance, ele acaba espelhando também feridas da sociedade e as reproduz, em lugar de corrigi-las. É o que acontece quando o meio permite comportamentos violentos contra quem está diretamente envolvido nos processos de produção, serviço e consumo.
E esses comportamentos são apresentados diariamente, de formas nem sempre (embora frequentemente) explícitas, como é o caso do racismo. Parece contraditório que em meio a toda essa variedade e sua constância, ainda haja pessoas incapazes de estender o respeito a outros por “diferenças” que, na realidade, não deveriam causar impacto na forma como as pessoas vivem e são tratadas.
Halline Santos, estudante de gastronomia, é uma mulher negra de 26 anos que já passou por discriminação no ambiente de trabalho. Após ter vivido uma situação de racismo em seu emprego como recepcionista e um afastamento por motivos de saúde, deixou a área de turismo para atuar na cozinha.
Ela conta que por não se tratar de uma função front office (que atua diretamente com o cliente), deduziu que não teria problemas desse tipo e poderia exercer sua função sem passar por um mau tratamento de outros membros da equipe. Não foi o que aconteceu.
Em 2022, recebeu um convite para trabalhar em uma rede de hotéis de luxo do Rio de Janeiro e passou por todas as fases do processo seletivo. Após o registro da contratação, foi informada que deveria abrir mão das suas tranças para poder começar no dia seguinte, o que a fez desistir do cargo.
A questão vai muito além do cabelo, que já foi alvo de comentários semelhantes em outros empregos. Isso demonstra uma indiferença por parte das empresas ao tratamento dado a funcionários negros e revela que as políticas de inclusão muitas vezes acontecem para elevar a marca, mas que não são de fato praticadas internamente.
As ofensas se agravam quando sua capacidade profissional chega a ser questionada. Halline conta que, em entrevistas, recebia perguntas direcionadas apenas a ela e não aos demais candidatos, brancos. Além disso, chegou a aplicar para uma vaga como confeiteira em cujo processo foi desrespeitada.
Neste processo, a supervisora decidiu, arbitrariamente, que seu tempo de treinamento deveria ser mais extenso do que o tempo padrão – não havia nenhuma razão, em termos de qualificação, que tornassem essa medida necessária.
A estudante, que hoje atua como freelancer, explica que ser questionada e subestimada é algo que se repete em sua história de vida e em sua carreira, bem como para as demais pessoas pretas, que se veem na mesma situação.
Entretanto, uma das principais formas de violência, sendo esta velada, é o apagamento na sociedade. Num país de maioria negra, a representatividade é extremamente irregular. Principalmente no ramo da gastronomia. Foi buscando essas figuras de referência que Halline conheceu Breno Cruz e seu trabalho para mudar essa realidade, por meio de seu projeto Preto Gourmet e do Prêmio Gastronomia Preta.
Outro modelo mencionado por ela é João Diamante, idealizador do programa social Diamantes na Cozinha. Aluna do chef, ela é uma das várias pessoas capacitadas pelo projeto e que tiveram sua trajetória beneficiada por ele.
Visibilidade faz diferença
Em um país miscigenado como o Brasil, a convivência com as diferenças é diária. Mais do que apenas coexistir, todos estão entrelaçados, inevitavelmente, a uma infinidade de experiências que são construídas por cada indivíduo.
Anular a vivência do outro, nesse contexto, é um ato de prepotência. A experiência de vida de uma pessoa é o que molda seu modo de ver o mundo, e por esse mesmo motivo, é necessário compreender que existem diversos pontos de vista e desapegar da noção de que apenas um é verdadeiro.
Negar a existência do racismo, portanto, não descarta a existência do problema e nada faz para mudar essa realidade. O diálogo já existe e tem um alcance relevante mas que, muitas vezes, não é capaz de sanar a questão pela raiz. Ainda é preciso um esforço para transformar essas palavras em ações, afinal, não basta não ser racista – é preciso ser antirracista.
Ao ser questionada sobre a melhor maneira de impulsionar essa mudança, Halline responde: “através da oportunidade. Muitas empresas tratam seus profissionais pretos como se trabalhassem por cota e como um recurso para melhorar sua imagem. ”
“É importante realmente valorizar esses trabalhadores, porque tem muita gente boa e precisamos de credibilidade. Existem muitos auxiliares de cozinha pretos, por exemplo, mas raramente em cargos de liderança e, muitas vezes, as pessoas ocupando esses cargos não têm a mesma capacidade que profissionais pretos que não são reconhecidos. ”
Sobre os planos para o futuro, além da graduação em dezembro, o desejo de Halline é trabalhar numa empresa que a valorize e em que seja respeitada. “Não adianta apenas estar em um lugar que tenha nome e que ofereça um bom salário, porque dinheiro não compra princípios”, afirma ela.