Narrativas fantasiosas podem ajudar a vender um menu, mas às vezes são um 'tiro no pé' da casa
"Aqui temos batatas envolvidas em argila chaco", fala Virgilio Martinez, chef do restaurante Central, em Lima, no Peru, enquanto abre esferas de argila no centro da mesa.
"No Peru, essa argila é utilizada há séculos para cobrir batatas com sabor amargo. Para conseguir essa argila, habitantes das zonas áridas do altiplano cavam manualmente furos de até cinco metros no solo", completa ele, no comando do melhor restaurante da América Latina, e o segundo melhor do mundo pelo 50 Best Restaurants.
À mesa, olhares maravilhados encaravam aqueles montinhos de terra: a narrativa foi tão envolvente que transformou três pequenas batatas enlameadas em preciosos bocados repletos de história.
No Central, o chef peruano interpreta os diferentes habitats do país por meio da comida, e acredita ser importante mostrar essa pesquisa aos clientes. "Fazemos toda essa encenação para mostrar ideias, trabalho e também uma narrativa que é construída sobre um trabalho real, sobre uma pesquisa, um desenvolvimento, uma conexão com as comunidades", diz.
A arte de contar histórias ou narrativas, conhecida como storytelling, existe desde o começo dos tempos —mesmo na gastronomia não é nova. Agora, no entanto, mais do que nunca está em ascensão.
Ainda que se valha da técnica, Martinez classifica-a como supérflua. "Não queria cair em dizer que para nós o storytelling é essencial, porque não é. O que é importante é explicar o trabalho que fazemos, e esse trabalho que é a história", avalia.
Janaína Rueda, chef d’A Casa do Porco, em São Paulo, acredita que os restaurantes têm o dever de, além de servir uma boa comida, educar as pessoas por meio de histórias. Atualmente, o menu de seu restaurante é assinado por uma equipe só de mulheres.
"É importante nós mulheres sairmos das sombras e nos darmos os devidos créditos. O fato deste menu ser de minha criação e direção junto a um grupo de cozinheiras mulheres diz muito sobre caminhar, por meio da educação, para abordar questões femininas de forma dócil", discorre.
A importância do feminino à frente também fez a chef Tássia Magalhães, do Nelita, em Pinheiros, se inspirar na memória afetiva, e cada etapa do menu conta uma parte da vida das cozinheiras ali presentes.
"Contar minha história através do Nelita está sendo muito importante, consigo levar minha alma até os clientes. Contar a história das meninas completa esse desejo de elevar a mulher na profissão, de poder mostrar um pouco dos caminhos de cada uma delas", explica.
Para muitos chefs, entregar uma narrativa junto da comida criaria um momento mais marcante para o cliente. "Quando uma história é contada de forma verdadeira, ela muda a relação do cliente com a comida, pois você mexe com outros sentidos e sentimentos", acredita Magalhães.
Segundo a neurociência, quando alguém ouve uma história, várias zonas do cérebro são ativadas ao mesmo tempo para construir uma sequência lógica. Por isso, ao escutar uma narrativa, o ser humano se envolve de maneira mais profunda.
"Faz todo sentido restaurantes usarem histórias para ativar o aspecto emocional no cliente", entende Danielle Bio, neuropsicóloga do Hospital das Clínicas.
"Contar uma história impactante, afetiva, cheia de detalhes, aliada ao olfato e ao paladar, faz com que o cliente memorize com mais eficiência aquela experiência. Ele vai se lembrar muito mais daquele restaurante, daquele prato, e vai querer voltar mais vezes."
Luiz Filipe Souza, do Evvai, é um dos que querem contar histórias via menu. "Todos os pratos carregam uma história de maneira muito forte, trazendo à tona a memória afetiva do cliente. São meios que a gente usa para que o cliente entre no clima e embarque na nossa narrativa", fala.
Arcelia Gallardo, da Mission Chocolate, acredita que o storytelling não apenas fideliza, mas também desperta o interesse do cliente em conhecer mais a fundo uma marca.
"Quem compra meus chocolates acaba ficando interessado em saber que outras histórias eu tenho para contar. Para mim, é impossível fazer um bom produto sem uma boa história por trás", defende.
Há, no entanto, situações em que o storytelling sai pela culatra - especialmente quando não é baseado em pesquisas reais. Em 2014, a marca de sorvetes Diletto virou alvo de investigação e processos do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) depois de consumidores acharem "exageradas" as histórias da marca.
Uma delas contava que Vittorio Scabin, "avô" de um dos sócios, havia trazido a receita dos produtos da Itália em 1922. A narrativa envolvia a Segunda Guerra Mundial e a neve dos Alpes como base para a fabricação dos "gelattos gourmet".
A falta de veracidade —ou, em bom português, a mentira— deixa os chefs atentos. Rafael Costa e Silva, chef do Lasai, restaurante com uma estrela Michelin no Rio de Janeiro, acha que alguns restaurantes passam do ponto.
"Tem restaurante que exagera. Tem gente que fica cinco minutos contando o prato, como é que faz, de onde vem, quem plantou. Eu como cliente não gosto disso", pondera.
Para ele, existem circunstâncias adequadas para o uso deste recurso. "Quando visitei o El Bulli, na Espanha, achei legal o storytelling deles, fazia sentido. Porém, isso se popularizou e me incomoda. O cara vem me contar uma história toda elaborada, aí você olha e o prato é um macarrão com molho de tomate. Fica difícil."
Na casa, a narrativa é usada para explicar seu conceito de forma pontual, no início da experiência. "Hoje o Lasai só tem mesa na cozinha, então ficamos a noite toda falando com o cliente. O importante é perceber qual o perfil de cada um: tem uns mais interessados, outros, menos", ensina.
Marco Renzetti, chef do Fame, nos Jardins, acha que a prática pode acabar como um "tiro no pé". "O storytelling é uma estratégia de marketing, e entendo que restaurantes usem isso para captar clientela. Mas nem sempre corresponde a uma história genuína, sincera, e muitas vezes é algo artificial. Dá para perceber que, na maioria dos casos, é algo construído", diz.
"Para mim, como cliente, não me interessa absolutamente em nada o storytelling. Eu vou se a comida é boa. O chef pode inventar todas as histórias que ele quiser, mas, se não tiver sabor, textura e ponto de cozimento, nenhum artifício de marketing, nenhuma história vai me fazer voltar."
Fonte: Folha de S. Paulo