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"Seguir o exemplo das latas de alumínio. Este é o caminho para que o Brasil saia dos últimos lugares mundiais na reciclagem geral dos resíduos sólidos, que hoje é de apenas 4%. O primeiro grande passo é a inclusão social do heroico catador. Temos que, também, sensibilizar toda a sociedade brasileira para que, diariamente, faça a separação dos resíduos domésticos", diz Paulo Solmucci, presidente da Abrasel
Por Valério Fabris
O Brasil é líder mundial na reciclagem de latas de alumínio para bebidas. Em segundo lugar está o Japão. Em terceiro, os Estados Unidos. O último resultado foi divulgado no ano passado (2022), referindo-se ao desempenho do ano anterior (2021). “O país precisa seguir, em todos os demais resíduos, pelo menos um pouco da reciclagem alcançada pelo alumínio, que, em 2021, foi de 98,7%”, diz Paulo Solmucci, presidente da Abrasel.
Anualmente, reciclamos apenas 4% dos cerca de 82,5 milhões de resíduos sólidos urbanos. Se, de 1988 em diante, desalojamos o Japão do primeiro lugar, ficando os Estados Unidos na terceira posição, temos condições potenciais para sairmos dos vexatórios 4% na reciclagem geral dos resíduos sólidos. Hoje, sequer figuramos no ranking internacional da plataforma online Statista, que segue critérios próprios. O último classificado desse ranking é o Chile, na 34º posição, com uma taxa de reciclagem de 0,5%.
Os cinco primeiros lugares do ranking da Statista, sediada em Hamburgo, são a Alemanha (taxa de reciclagem de 67,1%), Coreia do Sul (59,7%), Áustria (59%), Holanda (56,8%) e Itália (56,8%). O Japão, que internacionalmente brilha em todas as avaliações ambientais, sociais e econômicas, não se sai tão bem no ranking da Statista, ficando na 20ª posição.
Isso por conta de uma tradição nipônica de, ao se cuidar obsessivamente da higiene dos alimentos comprados in natura ou cozidos, abusa-se do uso das sacolas de plástico, filmes plásticos e isopores. A excessiva proteção dos alimentos decorre do desmedido uso de plásticos no Japão.
O Japão figura como o nono maior consumidor mundial de plásticos, depois dos Estados Unidos, reciclando 5,68%, segundo a WWF/Banco Mundial. A WWF é a sigla da Wide Fund for Nature (WW), sediada na Suíça, que nestas estatísticas usa dados do Banco Mundial. O Brasil, nesta classificação, está em quarto lugar, depois dos Estados Unidos, da China e da Índia. Os Estados Unidos reciclam 34,6% do lixo plástico; a China, 21,92%; a Índia, 5,73%; e o Brasil 1,28%.
As várias fontes ouvidas pela B&R são unânimes em dizer que é inadiável a melhora do Brasil na sua estrutura de coleta e reciclagem dos resíduos em geral, de modo semelhante à engrenagem da coleta e reciclagem das latas de alumínio para bebidas. Especificamente para as latinhas de alumínio, foram montados 36 centros de coleta, distribuídos em 18 estados.
A onipresente e avançada engrenagem da coleta e reciclagem do alumínio
Nessa operação, se entrecruzaram a Associação Brasileira de Alumínio (ABAL), a Associação Brasileira dos Fabricantes de Latas de Alumínio (Abralatas) e, mais recentemente, a Recicla Latas, que capacitou 388 gestores municipais em economia circular, em logística reversa e na Política Nacional de Resíduos Sólidos.
O processo flui com desenvoltura, inclusive pelo fato de que é bem maior o preço das latinhas de alumínio, em relação aos demais resíduos. O principal centro de laminação e reciclagem de alumínio da América Latina está em Pindamonhangaba (SP) e pertence à Novelis.
A reciclagem de uma tonelada de lata de alumínio evita a extração de cinco toneladas de bauxita. Reduz em 95% o consumo de energia e a emissão de CO². Indaga Paulo Solmucci: “O que dizer, então, da reciclagem das 82,5 milhões de toneladas dos resíduos sólidos urbanos, que hoje atinge apenas 4% do total?
Ele mesmo responde: “Temos um enorme espaço a ser ocupado. Precisamos ampliar, imensamente, a logística reversa, a reciclagem. Isso a partir da valorização do catador, que todos os dias realiza, para o país, um precioso trabalho ambiental, social e econômico”.
O catador é “o herói invisível do Brasil de todos os dias”. O reconhecimento desse personagem, como acrescentou, será suficiente para que se dê uma guinada na forma e no ritmo da coleta e reciclagem do lixo no Brasil. “É preciso, com urgência, que o país promova uma grande ampliação da coleta na reciclagem do material coletado, sem destiná-los aos aterros, e, muito menos, aos lixões”.
Os catadores, acrescentou ele, são “heroicos, são a brava gente brasileira”. Comumente, estima-se que formem uma população de um milhão de trabalhadores. Solmucci está articulando uma frente de ação em prol dos catadores.
Em uma segunda etapa, que, a partir dos bares e restaurantes, também se promovam ações de comunicação e educação da sociedade, com vistas a sensibilizá-la para a urgência de se tornar um hábito corriqueiro a separação do lixo em todos os endereços, seja em casa, nos escritórios, nas fábricas, escolas, nos estádios e assim por diante.
O foco Abrasel: atenção ao catador e comunicação pela separação dos resíduos
A primeira iniciativa, a ser adotada nos estabelecimentos do mundo Abrasel, é a de os empreendedores e respectivos funcionários começarem a usualmente praticar o gesto de aproximação com os catadores que usualmente trabalham nas imediações dos estabelecimentos.
Já terá sido uma primeira grande conquista, a partir desse protagonismo, o reconhecimento social dos catadores e das catadoras como personagens das ruas em que trabalham, dando-lhes assim a sensação de acolhimento e pertencimento.
Simultaneamente, dentro dos estabelecimentos do setor da alimentação fora do lar serão realizadas campanhas em favor da separação de resíduos, com vistas à maior praticidade no trabalho de coleta dos catadores. Essas ações serão divulgadas nos 15 grandes eventos que a Abrasel promove anualmente em todo país. Neles, serão reservados painéis para a abordagem dos temas referentes à coleta, logística reversa e reciclagem dos resíduos sólidos no país.
De imediato, como ação prática do dia a dia da Abrasel, o que se projeta é o movimento face a face com catadores e catadoras. O efeito dessa interação entre os estabelecimentos e os fregueses é o de, mesmo que inicialmente seja em pequena escala, começar a remover o preconceito do que se considera como um trabalhador e um trabalho desqualificados.
Esta é uma visão pejorativa que já afeta os donos dos botecos e atinge, em uma escala muito maior, os catadores, que, de tão desprezados socialmente, se tornam invisíveis.
O catador de resíduos é, entre todos trabalhadores, o mais discriminado
Nos países de históricas raízes escravocratas, como é todo o Brasil de Norte a Sul, de Leste a Oeste, incorporou-se ao caráter nacional o preconceito em relação a quaisquer trabalhos manuais. Os donos de botecos costumam exercer múltiplos afazeres, desde receber os clientes, e também lhes servindo nas mesas, varrer a calçada, limpar as mesas e o balcão, carregar mercadorias para dentro do estabelecimento.
O preconceito em relação aos catadores é incomparavelmente maior, porque lidam com resíduos, além de serem também discriminados por suas precárias condições socioeconômicas. Como eles mesmos sabem o que é serem vistos com um sutil viés preconceituoso (uma vez que sentem isso em suas próprias peles), os donos de boteco facilmente captam a vergonha e o desconforto social que se estampam no rosto dos catadores.
Em sua fala na abertura da reunião anual do Conselho de Administração Nacional da Abrasel, realizada no dia 31 de janeiro, no interior mineiro, Paulo Solmucci contou um episódio relativo a catadores, que lhe ocorreu quando, junto com a família, passava uns dias no litoral baiano.
Narrou ele: “Minha barraca de praia é sempre um lugar bom para catadores pegarem latinhas. E eis que, como é usual na faixa de areia, um deles se aproximou mais ou menos perto, e percebi que timidamente olhava as latinhas, já vazias de cerveja. Estava visivelmente receoso de falar o que queria. Daí, de uma maneira alegre e receptiva, perguntei: - Qual é o seu nome? Ele respondeu: Marcelo”. Então, emendei, apontando para as latinhas: - Pois, então, Marcelo, as latinhas são todas suas, com o maior prazer”.
Paulinho conta que os olhos do rapaz brilharam. Foi como se o moço tivesse sido tomado por “um estado de espanto”. Na sequência, o rapaz logo pegou as latinhas, com um sorriso no canto dos lábios. E, apressadamente, foi embora, como um menino que tivesse acabado de receber uma bola de presente.
“Aquele episódio foi a confirmação viva do que já há algum tempo tenho mencionado em conversas com o pessoal da Abrasel. É o seguinte. Temos de liderar um processo nacional de cotidiano relacionamento com os catadores. Todos nós cumprimentaremos e conversaremos com os catadores que passam pelas ruas dos nossos estabelecimentos. O que custa cumprimentar? E, ao pensar nisso, lembro-me um idiota que, sentado à mesa, tomando champanhe ou cerveja, laça um olhar atravessado ao catador que está parado na calçada. Esse catador nos presta um serviço absolutamente essencial. Ele dá sua contribuição para que a gente viva neste planeta, sem destruí-lo”.
Solmucci diz que vítima do preconceito se sente humilhada frente a pessoas conhecidas e desconhecidas. A rejeição provoca estresse, ansiedade, vergonha social, depressão.
“Os nossos estabelecimentos de portas abertas às calçadas são redutos da convivência plural. Nós da Abrasel temos uma vocação integracionista, não segregacionista. A mescla ocorre em todos os estabelecimentos, e com maior incidência nos bares, botecos, nas lanchonetes, cafeterias e nos quiosques. A gente acaba sendo a principal referência para um projeto nacional do convívio mesclado, seja em relação aos gêneros, aos níveis de renda, às faixas etárias, à cor da pele. Somos vocacionados a incluir, a remover preconceitos e bullyings”.