As vagas para as quais ainda não se encontram candidatos dispostos a preenchê-las referem-se aos serviços básicos na sociedade americana
Os Estados Unidos têm 11 milhões de vagas de trabalho disponíveis. Se cada um dos atuais seis milhões desempregados, no país, ocupasse uma das vagas, ainda restariam cinco milhões de empregos em aberto.
Os dados são da Câmara de Comércio dos Estados Unidos (USCC), instituição que representa mais de três milhões de empresas e organizações do país. O boletim da USCC, noticiado em vários grandes jornais americanos, é de 19 de agosto de 2022.
Por que, afinal, a oferta de emprego é maior do que a demanda, havendo mais de seis milhões de vagas do que pessoas dispostas a ocupá-las? No conjunto dos mais prestigiosos veículos da imprensa internacional podem ser extraídas as seguintes explicações para esse inusitado e gigantesco fenômeno.
As vagas para as quais ainda não se encontram candidatos dispostos a preenchê-las referem-se aos serviços básicos da sociedade americana. Ou seja: são empregos que demandam menos qualificação e escolaridade.
Referem-se às ocupações de, por exemplo, motoristas de caminhão e de transporte público, camareiras de hotéis, carregadores e descarregadores de malas nos aeroportos, faxineiras de creche, lavadores de pratos, ajudantes de garçons, ajudantes de cozinhas, atendentes do comércio varejista, profissionais das queimas de fogos (pirotécnicos), diaristas, guarda-vidas de piscinas. Muito dessa mão de obra contratada para os serviços básicos vem da imigração.
1) O fator imigração
O ex-presidente americano Donald Trump deixou como um dos seus legados, na Casa Branca, uma extrema burocratização dos procedimentos democráticos para admissão de imigrantes e para a regularização daqueles que ilegalmente atravessaram as fronteiras. Assim, a entrada de imigrantes no território americano teria caído de um milhão de pessoas, no período 2015/2016, para 247 mil, no ano de 2021.
Paralelamente, também passaram a faltar, por outra razão, os trabalhadores que servem aos níveis acima dos níveis básicos, seja nos escritórios, nas agências bancárias ou nos supermercados.
É que, além do fato de haver menos imigrantes, os americanos com melhor qualificação e escolaridade desertaram de seus empregos, dedicando-se apenas aos afazeres domésticos, à família, ao lazer, às atividades culturais, sociais, religiosas e esportivas. Para tanto, anteciparam suas aposentadorias.
Deste modo - junto com o declínio da entrada de imigrantes - desertou do mercado de trabalho um porcentual da população americana que se encaixa na faixa etária da geração “baby boom” (nascida entre 1945 e 1964), que optou pela antecipada aposentadoria.
O recolhimento doméstico no período mais ativo da pandemia levou um considerável porcentual de americanos a uma ainda mais profunda introspecção e reavaliação pessoal, provocando-se, daquele momento em diante, a guinada em suas expectativas de suas vidas.
2) O fator da aposentadoria antecipada
Pois assim ocorreu o que foi chamado de o Grande Repensar (The Great Rethink), o fenômeno que incidiu, majoritariamente, no espectro etário compreendido entre os cinquenta e setenta anos de idade, quando já há legalmente a possibilidade de antecipação da aposentadoria.
Em outras palavras, esse fenômeno se deu na geração “baby boom”, isto é, os nascidos entre 1945 e 1964. Junto com o declínio da imigração, a aposentadoria antecipada aumentou ainda mais a oferta de vagas no mercado de trabalho.
Houve aí, como identificaram sociólogos, psicólogos e especialistas na área de recursos humanos,larga e acentuada mudança nos projetos de vida que as pessoas, mas principalmente os “baby boomers”, têm pela frente.
Constatou-se massiva antecipação das aposentadorias, provocando vasta deserção nos ambientes profissionais dos que trabalhavam em estabelecimentos industriais, comerciais, financeiros, educacionais e de saúde. Criou-se um vasto hiato no universo americano do trabalho, ampliando-se ainda mais o desbalanceamento entre a oferta e a demanda de emprego.
3) O fator dos que só se ligam aos trabalhos que contêm propósito social
Uma terceira camada etária tornou-se a origem ao terceiro fator que, somado ao declínio da imigração e à antecipação das aposentadorias, ampliou ainda mais a diminuição do total da mão de obra empregada e o consequente aumento das ofertas de emprego.
A terceira camada é majoritariamente constituída por pessoas que só aderem aos trabalhos condizentes com seus propósitos de vida, a sua motivação existencial em relação a pautas, como as do meio ambiente, da redução da pobreza, igualdade de gêneros, sociodiversidade, e, inclusive, às vezes, a antiglobalização.
Essa terceira camada é constituída, sobretudo, pelas gerações X (nascidos entre 1965 e 1980) e Y/ Millennials (nascidos entre 1981 e 1996), com idades variando entre mais ou menos 25 e 55 anos. Há os que têm um perfil mais alternativo, às vezes até com um viés antiliberal na economia (almejando um Estado protetor) e muito liberal nos costumes. Eles querem uma relação de trabalho que se encaixe em seus pensamentos e estilos de vida.
4) O fator do funcionário antissistema
A pandemia funcionou também como o gatilho que fez disparar o latente “zeitsgeist”, o “espírito do tempo”. De um lado, o “zeitgeist” teve como fermento os movimentos anarquistas, detonados a partir das manifestações de maio de 1968, na França, e mais recentemente, alardeados em protestos como o realizado no Fórum Econômico Mundial, no ano de 2002, em Nova York, e o Occupy Wall Street, em 2011, no Zuccotti Park, distrito financeiro de Manhattan.
Uma das mais influentes lideranças de ambos os movimentos foi o anarquista, antropólogo e escritor americano David Graeber, que faleceu aos 59 anos de idade, em setembro de 2020. Ele é autor do livro “Bullshit Jobs: A Theory”, lançado em 2018.
Já em 2013, conforme se publicou no jornal The Washington Post, Graeber alcançou notoriedade internacional em 2013, quando publicou um artigo, no qual mencionou a hipótese de que um grande número de profissionais não fazia quase nada no trabalho.
Ou seja: “Embaralhavam papéis, lutavam contra a sonolência durante as reuniões e se sentiam infelizes por saber que seus empregos não contribuíam com nada significativo para a sociedade e poderiam desaparecer sem que ninguém percebesse ou se importasse”. Com o livro “Bullshit Jobs: A Theory”, David Graeber difundiu seus conceitos mundo afora.
5) O fator fim do bônus demográfico "baby boomer"
Adicionalmente, há um quarto fator para a crise de mão de obra que se abate em várias partes do mundo e, com grande intensidade, nos Estados Unidos. A revista inglesa The Economist aponta, em sua edição de 5 de fevereiro de 2022, para o fato de que o bônus demográfico se esgotou. A acentuada aposentadoria precoce dos “babies boomers”, que ocorreu a partir de
fevereiro de 2020, com o início da pandemia, selou o fim desse bônus.
É uma geração do pós-Segunda Guerra Mundial, ocorrida entre 1939 e 1945. Muitos homens dos Estados Unidos para lutar na Europa e no Pacífico, deixando para trás esposas e famílias. Finda a guerra, imediatamente houve um descomunal número de casamentos e partos, tendência essa que teve continuidade nos anos seguintes.
A economia dos Estados Unidos ingressou nos anos dourados, forte e próspera. Na matéria da The Economist há esta conclusão:
“De acordo com o Census Bureau, a população americana cresceu apenas 0,12% no ano até julho de 2021, o menor aumento anual desde que o departamento começou a coletar esses dados em 1900. A população branca americana está caindo. O mesmo acontece com o número de menores de 18 anos. Políticos e comentaristas se preocupam com uma ‘busca de bebê’”.